02 mai, 2018 - 07:04 • Vasco Gandra, em Bruxelas
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Ariane Bazan, psicóloga e professora de psicologia clínica na Universidade Livre de Bruxelas, opõe-se à eutanásia para os casos de sofrimento psíquico. Considera que uma doença psíquica não é necessariamente incurável e portanto a lei não deveria prever a eutanásia para estas situações.
Em 2015, escreveu uma carta aberta juntamente com outros colegas em nome de 65 psicólogos e professores universitários contra a eutanásia por motivos de sofrimento psíquico e a pedir a supressão da eutanásia para estas situações.
A lei belga permite a eutanásia em determinadas condições: o paciente deve ser capaz de exprimir a sua vontade, estar consciente, encontrar-se numa situação médica sem saída, num estado de sofrimento físico e/ou psíquico insuportável, devido a doença grave ou incurável. Nos últimos anos, o número de eutanásias praticadas na Bélgica alcançou cerca de duas mil por ano, sendo que 3% são por motivos de sofrimento psíquico insuportável.
Ariane Bazan denuncia casos em que a eutanásia é aplicada segundo a lei mas que na realidade correspondem a suicídios assistidos. Denuncia também a banalização da ideia de morte nos serviços de cuidados aos pacientes e a existência de situações problemáticas.
Considera que deve ser dada prioridade aos serviços de cuidados aos pacientes estabelecendo uma verdadeira relação terapêutica comprometida no longo prazo com os doentes.
Na carta aberta, os subscritores opõem-se à banalização da eutanásia para casos de sofrimento psíquico. O que receiam exactamente?
Na realidade, não sou apenas contra a banalização, sou contra a eutanásia para casos de sofrimento psíquico. Penso que a lei não se pode aplicar a casos de sofrimento psíquico. A lei precisa muito explicitamente que a situação deve ser do ponto de vista médico sem perspectiva, desesperada. Ora, a diferença entre as doenças ditas psíquicas, de sofrimento psíquico, e as doenças do corpo, físicas, somáticas, é que não se pode dizer antecipadamente que uma situação é deseperada. Não se pode objectivar que a situção não vai melhorar, que é incurável.
De facto, penso que a lei não se pode aplicar aos casos de sofrimento psíquico. Não falo do sofrimento somático acompanhado de sofrimento psíquico. Falo dos casos de depressão, de problemas de personalidade, de psícose, esse género de problemas.
Pedem portanto uma mudança da lei?
Sim, logicamente penso que se deve retirar os sofrimentos psíquicos da lei. Mas politicamente não há nenhuma possibilidade disso acontecer. Mas politicamente deveriamos chegar a um acordo para haver muito mais precauções e balizas em relação ao sofrimento mental e psíquico.
Por exemplo?
Bem, há uma coisa que é uma aberração: é o facto de que o controlo dos dossiers se faça após a morte do paciente. Entre a primeira declaração e a execução da eutanásia decorre um mês porque esse controlo é modelado sobre os casos de doenças somáticas como o cancro em que o doente não tem muito tempo. Nestes casos é necessário agir rapidamente e a comissão de controlo vê as coisas depois.
Mas para as doenças psíquicas, não devia ser esta a lógica. Este prazo de um mês é muito curto. E o facto de os dossiers serem vistos após a eutanásia, é absurdo. Repito, penso que a lei não é aplicável no caso das doenças psíquicas. Deveríamos por-nos de acordo sobre algumas balizas porque o que acontece no terreno não é o que desejamos.
Voltando à questão das doenças psíquicas não serem necessariamente incuráveis. Admite portanto que há sempre uma possibilidade, uma esperança de uma melhoria?
O problema é que pensamos que os sofrimentos psíquicos estão no mesmo modelo médico que os sofrimentos do corpo. Mas do lado do corpo, podemos objectivar algo ao nível dos tecidos do organismo enquanto que ao nível dos sofrimentos mentais, podemos objetivar algo mas é sempre dinâmico. São mudanças dinâmicas. As imagens que alguém vê, as imagens do cérebro e esse tipo de coisas, por exemplo, são sempre imagens dinâmicas. São sempre um contraste de um tempo 1 para um tempo 2. Nunca é um corte.
Portanto, o que se pode objetivar são mudanças de funcionalidade, de conectividade, de dinâmica. Mas como são mudanças de dinâmica, das próprias palavras compreende-se que a situação pode mudar. O que podemos objetivar não é nunca a possibilidade de dizer que é incurável até porque a situação é variável.
Ao contrário do que se pensa, a situação pode mudar por vezes facilmente mas também pode mudar brutalmente. Por vezes, vemos casos que mudam bruscamente, de um dia para o outro, mesmo quando são pessoas que têm um percurso difícil. Portanto, em teoria não se pode objetivar que uma doença ou sofrimento mental seja incurável. E na prática o que se faz não é eutanásia para sofrimentos psíquicos é suicídio assistido.
Penso que os próprios psiquiatras se dão conta de que não podem dizer a 100% que a situação não vai melhorar. Mesmo assim dão a sua caução porque estão numa ótica de suicídio assistido.
Num país que está a agora a discutir esta questão como Portugal, o que é lhe parece mais necessário em termos de debate público?
É bom aprender com as nossas experiências aqui e na Holanda. Penso que os grandes problemas que se colocam estão relacionados com os dossiers "não-terminais". Em relação ao termo médico "não-terminal" não me pronuncio porque não sou médica mas pode-se fazer uma eutanásia a pacientes que não são "terminais", que não vão morrer em seis meses.
E isto inclui também a doença psíquica porque nestes casos não se vai morrer nos próximos 10 meses ou necessariamente morrer em 10 anos.
Penso que nos casos "não-terminais" faz-se entrar a morte nos serviços de cuidados, o que infeta os serviços de cuidados com a morte. Enquanto psicólogos, quando temos que tratar de pacientes que não estão nada bem, com problemas existenciais ou ideias suicídas, penso que a única possibilidade de obter resultados, ou o máximo de resultados, é de avançar sem rede, sem plano B. Ou seja, é dizer: "vamos lá, vai correr bem e vamos conseguir" e não pensarmos que, se não conseguirmos, temos sempre o plano B, isto é a eutanásia. Se temos de imediato o plano B, também os pacientes são atraídos por esse plano. Isso retira-nos a possibilidade de ajudar toda a gente.
Há psiquiatras que nos dizem que são pressionados porque se não avançam suficientemente depressa o plano B é ativado. Há uma espécie de contaminação da ideia de morte.
Uma banalização da ideia de morte?
Sim, e também subestimamos o facto de que isso pode ser epidémico e que outros são contaminados por essa ideia apesar de não ser necessariamente o seu desejo.
E mesmo que não façam [a eutanásia] sentem-se culpados de não o fazer, por exemplo nos hospícios. Estão fragilizados em relação ao seu direito a viver. Portanto, o conselho que daria é que se tenha em conta que as situações "não terminais" são um caso específico em relação aos casos "terminais".
Não sou médica, não posso falar sobre a doença somática não terminal. Mas enquanto psicóloga falo com conhecimento de causa, creio que a eutanásia apenas por sofrimento mental compromete todo o setor dos cuidados em saúde mental. Não afeta só as pessoas que pedem eutanásia mas a possibilidade de ajudar toda a gente. Portanto, sou contra. É um combate que não vou ganhar porque à esquerda e à direita há um grande consenso a favor da eutanásia. Mas então cheguemos a acordo sobre as balizas.
Quando vemos o que acontece, à esquerda e à direita, podemos reconhecer que isto se faz de forma selvagem com casos muito problemáticos. Pessoas jovens de 24 anos, por exemplo. Mas não se pode dizer que uma pessoa com 24 anos tenha um longo trajecto em psiquiatria e que tudo foi tentado.
Se somos pais, não queremos perder o nosso filho mesmo se este adolescente ou jovem adulto vive momentos difíceis há já alguns anos.