14 mai, 2018 - 13:00 • José Bastos
Uma reconfiguração do cenário politico mundial com a China e a Rússia a aumentarem áreas de acção e de influência - e a perda de capacidade de mediação dos Estados Unidos - é um cenário que José Pedro Teixeira Fernandes gostaria de ver mais discutido no Ocidente.
O especialista em geopolítica analisa dois elementos de convulsão política dos últimos dias, os múltiplos conflitos no Médio Oriente e a cimeira Estados Unidos-Coreia do Norte, precipitados por dias decisões de Trump a 8 de Maio: romper o acordo nuclear com o Irão e aceitar data e local para cimeira com o líder da Coreia do Norte.
Sobre o Médio Oriente, o professor universitário nas áreas de Relações Internacionais e Estudos Europeus sustenta que a Rússia torna-se o “interlocutor indispensável” e a China tem a chave do futuro em Teerão. Já quanto à desnuclearização da Coreia, Teixeira Fernandes assume que as “expectativas estão muito altas e pode ser contraproducente”.
“Israel, India e Paquistão: ninguém recuou depois de alcançar o pleno estatuto nuclear”, diz. “Seria um elemento completamente novo”, alerta.
Afinal, Trump não está hoje em Jerusalém, mas a inauguração da embaixada, depois da ruptura do acordo nuclear com o Irão, os ataques entre Israel e o Irão nos Montes Golã soma uma pesada carga simbólica a um quadro já muito tenso no Médio Oriente?
A carga simbólica já existe desde que foi feita a declaração do presidente Trump da transferência da embaixada para Jerusalém. Em dois momentos: no início do mandato e quando o processo foi posto em marcha. Não há novidade nesse ponto. Claro que no contexto das tensões referidas, sendo uma cerimónia formal de abertura - mesmo sem a presença de Trump - há sempre um potencial acrescido de conflitualidade.
Com as condições actuais do Médio Oriente é sempre um risco - pelo menos em abstracto - que esta jornada seja motivo de alguma confrontação, seja de protestos domésticos por parte da sectores da população israelita, seja das populações palestinianas que vivem no interior de Israel.
Admite-se até algum tipo de incidente na periferia de Israel e estou a pensar no caso da Síria e da confrontação dos últimos dias nos Montes Golã, envolvendo bases de militares iranianos. Vamos esperar que nada aconteça, mas é algo a não poder ser antecipado com segurança.
Confrontos nos Golã relacionados com o "não" de Washington ao acordo nuclear com o Irão. Há uma acção concertada Estados Unidos-Israel? Estados Unidos com pressão política e Israel com pressão militar também para enviar um sinal à Coreia do Norte?
É provável ou, pelo menos, é possível algum tipo de concertação. Nesta altura sabemos da proximidade do governo dos Estados Unidos com Israel, algo não existente na era Obama: eram aliados, mas as relações não eram as melhores. Também pode haver outra explicação - com resultados idênticos - que é Israel aproveitar acções políticas dos Estados Unidos para essa actuação militar, mais ou menos, em sintonia sem que tenha havido uma concertação formal prévia e explícita.
Mas a questão síria é fundamental nesta dinâmica de desenvolvimentos no Médio Oriente. Já temos um confronto israelo-iraniano mais ou menos visível em território iraniano com episódios que aumentam em frequência e gravidade. O último foi o dos Montes Golã.
E esta complexidade do Médio Oriente leva-nos nesta análise a outro actor fundamental: a Rússia. Moscovo tem aqui um papel muito curioso e hábil num movimento que não deixa também de ser complexo para os russos. Rússia que entrou na guerra civil síria em 2015 ao lado de Assad e do Irão - que já estava no terreno via Hezbollah libanês.
Muitas vezes no Ocidente é mal percebida a relação da Rússia com o Irão. É inquestionável que em muitos aspectos são países com alinhamento de interesses, caso da Síria, mas a relação da Rússia com o Irão é um misto de cooperação e competição.
Uma Rússia que mantém boas relações com Israel. Netanyahu, ainda na semana passada, encontrou-se em Moscovo com Putin. Até onde irá a Rússia?
A Rússia pode fazer um jogo estratégico de risco que, em função do resultado final, pode dar-lhe vantagens interessantes ou problemas significativos. Neste momento a Rússia tem um conjunto de interesses que convergem com os do Irão, mas não levaria longe de mais essa sintonia, porque há uma dimensão competitiva e aqui entra Israel.
É claro nos últimos tempos que também há um lado de excelente relação pessoal entre Putin e Netanyahu que também ajuda neste raciocínio.
A Rússia já estar a pensar na Síria pós-guerra civil que se encaminha para o fim com um cenário em que vai competir em influência com o Irão. Nessa lógica os russos não estão ver com maus olhos também o afastamento do Irão dessa posição de vanguarda no apoio a Assad.
Cruzando este dado com a relação da Rússia com Israel temos aqui uma dinâmica em que, na prática, a Rússia faz umas condenações formais aos ataques, mas na prática, desvia o olhar. De resto, seriam impossíveis estes raids e bombardeamentos de Israel a alvos iranianos na Síria se a Rússia estivesse firme e inquestionávelmente ao lado do Irão. Percebemos que os russos não estão incondicionalmente ao lado de Teerão.
Os israelitas têm comunicado antecipadamente os ataques aos russos. A Moscovo interessa que Israel mantenha a pressão alta sobre o Irão?
Interessa essa pressão alta, porque coloca o Irão à defesa na Síria e confere maior relevância ao papel da Rússia. Se esta estratégia correr bem a Putin a Rússia torna-se o actor inquestionável na Síria - já o é, em parte, mas ao lado do Irão - e, por outro lado, é o interlocutor no Médio Oriente que Israel até vê com bons olhos.
A Rússia também não desagrada à Turquia?
Exactamente no caso da Turquia. Ou seja, a Rússia tem aqui uma posição potencial de vir a ser no Médio Oriente o actor com quem todos falam. Nesse aspecto até superando a posição dos Estados Unidos. Parece-me ser este notoriamente o jogo de Putin, aliás, nos últimos anos o líder russo até foi fazendo alguma abertura aos países árabes sunitas como a Arábia Saudita. Em resumo, do meu ponto de vista a estratégia da Rússia é, por um lado, evitar uma presença dominante do Irão na Síria para Putin poder ter maior influência e, por outro, tornar-se aquele interlocutor com estatuto de grande potência em que todos vêm uma presença consensual para qualquer negociação avançar: o interlocutor indispensável.
Trump denunciou o acordo nuclear com o Irão também por razões domésticas: não perder a maioria no Congresso nas eleições de Novembro? O argumento faz sentido?
Faz algum sentido, mas não concordo ter sido a razão fundamental ou a única. Sabemos que as questões de política interna acabam sempre por se cruzar com as de política externa, nalguns exemplos mais evidentes que outros. Neste caso é dos poucos pontos de Trump com uma tomada de decisão alinhada com alguma coerência. Ao contrário de outras questões, onde vimos uma trajectória ziguezagueante, inversões e contradições várias, denunciar o acordo com o Irão foi sempre uma bandeira de Trump e no seio do Partido Republicano sempre foi forte a contestação ao acordo com o Irão. Mas esse argumento da politica doméstica (referido por Macron) também terá tido peso no cálculo de Trump.
Trump quer também fazer passar uma mensagem para a Coreia do Norte e para a cimeira do dia 12 em Singapura do tipo "os termos não podem ser os mesmos que os do acordo com o Irão"?
So ângulo de análise for o da actual administração norte-americana essa parece ser também uma intenção, mas é uma linha não isenta de críticas. Olhando para o acordo com o Irão eu gostava também de lançar um dado relevante. Em Portugal tem-se discutido muito, mas também no Ocidente em geral, a denúncia deste acordo como uma questão envolvendo naturalmente os Estados Unidos, a União Europeia, uma ténue referência à Rússia, mas quase não se fala da China.
O meu alerta é que a China é outro actor fundamental e é uma ilusão analisar a questão sem a centralidade chinesa que pode ser decisiva e não os europeus. Explico-me: a relação comercial mais importante do Irão já é, neste momento, a que mantém com a China. As sanções comerciais eram eficazes porque os Estados Unidos eram uma economia tendencialmente hegemónica.
O peso dos Estados Unidos no comércio internacional - ainda é importante, isso está fora de questão - mas tem vindo a diminuir e o peso da China a aumentar. É uma dinâmica que quase automáticamente retira impacto às sanções. Se a China se empenhar em manter o acordo e alimentar a relação económica com o Irão irá tornar largamente ineficaz o efeito das sanções de Washington. Coloco um 'se', porque a possibilidade também poderá acarretar problemas para Pequim num periodo de tensão comercial com várias disputas com os Estados Unidos.
Levando em conta esse papel decisivo da China as expectativas para a cimeira Estados Unidos/Coreia do Norte em Singapura estão a ser exageradas?
As expectativas estão muito altas e pode ser contraproducente. Esta é das questões políticas mais complexas do cenário internacional. Não é impossível, mas é muito dificíl chegar a um acordo efectivo de desnuclearização da Coreia do Norte. Há muitas variáveis a concorrer contra esse cenário. Desde logo a legitimidade do regime norte-coreano construída perante a população pelo orgulho de ser uma potência nuclear. Podemos ver esse cenário no Irão com muitos dos opositores ao regime doa ayatollahs a ter orgulho no programa nuclear pelo que representa de proeza tecnológica que é. Vimos isso no Paquistão.
Há aqui um dado completamente novo: não há nenhum caso de país que tenha chegado ao estádio nuclear efectivo - com capacidade nuclear e balística plena - e de, a seguir, ter feito marcha-atrás. Os casos de países chegados a essa plataforma - Israel, India e Paquistão - estão todos lá, não se registaram recuos. Há casos de abandonos e desistências - Líbia, África do Sul, Argentina e outros - mas em fases de desenvolvimento muito anteriores. Este é um dado absolutamente novo que já não ajuda a que se obtenha uma solução completamente oposta. Em segundo lugar, volta-se à China como actor fundamental por muito que se queira retirar o foco de Pequim.
A estratégia de Pequim é a de as suas fronteiras tenham algum tipo de influência por parte do poder chinês, caso da Coreia do Norte. Não se trata de nada de surpreendente.
Afinal esta sempre foi a estratégia dos Estados Unidos quando ascendeu à condição de grande potência no final sec.XIX, início do sec.XX. É conhecida como a doutrina Monroe e a estratégia foi colocar as potências europeias fora das Américas. Neste momento a China está no mesmo ciclo histórico. Está em ascenção e a estratégia é colocar os Estados Unidos fora da Ásia e Pacífico.
Esse pano de fundo não antecipa grande sucesso na cimeira de Singapura...
Ficaria agradavelmente surpreendido se a cimeira se traduzir em resultados muito concretos para a desnuclearização da Coreia, mas considero esse quadro muito improvável. Até porque o cenário mais realista de uma desnuclearização seria um quadro em que alguém teria de dar alguma 'garantia nuclear' à Coreia do Sul e que seria... a China. Ou seja, o preço seria provavelmente uma Coreia reunificada sob a influência da China. A questão então seria: e qual o papel dos Estados Unidos na região se assim fosse? Não é?
E que papel para a Europa no caso do Irão? Sabemos da promessa de investimentos europeus, mas um diplomata citado pela Reuters, afirma que quando uma empresa europeia tiver de decidir entre Teerão e o potencial de investimentos nos Estados Unidos é fácil escolher...
Penso que esse comentário antecipa o que provavelmente irá acontecer. Os europeus estão numa situação delicada. Por um lado têm interesses económicos e enormes perspectivas em curso, mas por outro estão por estratégia e segurança fortemente ligados aos Estados Unidos e o mercado é, de um modo geral, ainda o seu principal destino de exportações. Portanto, se as diligências dos europeus avançarem sem qualquer tipo de compromisso renovado de Teerão e Washington - altamente improvável - mais tarde ou mais cedo chegaremos a esse momento em que as empresas europeias vão escolher.
Ora nesse quadro voltamos à China o país que mantém maior margem de manobra no Irão, até como cartada para usar na renegociação comercial em curso com os Estados Unidos transformando-a numa eventual moeda de troca. Se chegar a esse ponto os europeus não vão ter grande margem de manobra. Por outro lado, já no pior dos cenários, na ausência de entendimentos, este quadro de conflito pode amplificar a guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China.
E quanto à estabilidade do próprio regime iraniano? Há sinais de que a ala radical quer colocar fogo no rastilho e destituir um moderado como Rouhani... E quanto ao risco de confronto alargado no Médio Oriente?
Claro que há a evolução interna no Irão e outro aspecto o da sua projecção no Médio Oriente - um ponto pode condicionar o outro. É natural que o processo cause turbulência interna numa ala mais radical do regime a poder encontrar novos argumentos para eles próprios se afastarem do acordo. Se o Irão perceber que os chineses - centrais neste processo - se vão empenhar na manutenção do acordo, deixando aberto o canal económico, rejeitando a lógica das sanções - a Rússia provavelmente também o fará - essa ala mais radical em Teerão não irá vingar e não terá assim argumentos domésticos tão decisivos para o fazer.
Já no plano mais alargado do Médio Oriente claro que há um potencial de confronto com Israel em território da Síria. Mas apesar da escalada de tensão existente, com o caso dos Golã, tem havido alguma contenção e vontade de evitar uma confrontação de maior dimensão. Aliás no caso dos Golã podemos ter duas leituras, a Síria também os reivindica porque foram anexados por Israel em 1967.
A tese do Irão pode ser a de que atacou um território que não é de Israel, mas está ocupado. A mensagem tem sido tão subtil quanto este aspecto. Claro que há sempre o risco de conjugadas certas circunstâncias, por exemplo um bombardeamento com um efeito colateral mais grave até do que era intenção de quem o fez, de se entrar um período de confrontação mais elevado.
Com consequências no plano geoestratégico e na economia mundial através, por exemplo, do preço do petróleo?
Esse é o outro dado interessante para finalizar este quadro muito complexo. Esta tensão acaba por provocar uma subida nos preços do petróleo e da energia que, por exemplo, favorece a Rússia. Em principio também favorece o Irão e muitos dos inimigos dos Estados Unidos. Irónicamente também favorece o mercado petrolífero dos Estados Unidos que têm a maior produção não convencional de petróleo do planeta - via 'fracking' - e que, à medida que sobe o preço do barril, se torna ainda mais rentável.
Os europeus é que são os únicos que nada ganham com a escala de tensão. Como são fundamentalmente importadores acabam de perder neste jogo de subida dos preços de energia que é outro dado óbviamente relevante: um jogo que fortalece o regime russo, fortalece os países do Médio Oriente e até a própria Venezuela que nada tem a ver com esta crise, mas como grande exportador da OPEP verá o regime de Maduro mais forte. Este é um exemplo das implicações deste quadro com os europeus, uma vez mais, a serem o elo mais fraco, a peça mais frágil de toda a dinâmica.