22 jun, 2018 - 15:20 • Catarina Santos , em Valência
É início da tarde e sobram poucas sombras à porta do Complexo Educativo de Cheste, a 30 km de Valência. Entram voluntários da Cruz Vermelha, intérpretes, polícias. Saem dois rapazes com calças e casacos pretos, t-shirts verdes, sapatilhas novas. A indumentária denuncia-lhes a identidade, como se transportassem um néon por cima das cabeças.
Todos os migrantes e refugiados que chegaram no domingo a Valência, depois de uma semana a bordo do navio Aquarius, receberam roupas iguais. Destacam-se facilmente ali no meio do nada, numa zona industrial plantada na estrada que vai dar à pequena povoação de 8 mil habitantes.
Os irmãos Assan e Mustafa Bejang vêm sorridentes a subir a rua, em direção ao único café da zona, a 750 metros do centro. Ainda não conseguiram avisar a família que chegaram a Espanha. Não lhes contaram, sequer, que tinham finalmente conseguido entrar num barco insuflável em direção à Europa, depois de dois anos na Líbia. Têm seis irmãos na Gâmbia que não fazem ideia de que eles foram resgatados pelo navio Aquarius e que passaram uma semana em alto mar, entre mais de 600 pessoas, apanhados no meio de um incidente internacional que pôs a nu a fragilidade das políticas europeias de migração.
Há telefones dentro do centro de acolhimento improvisado, que neste momento aloja mais de 450 pessoas (a maioria dos migrantes que chegaram no domingo – nove crianças, mais de 40 mulheres, cerca de 400 homens; outros 113 menores estão em Alicante; os restantes ficaram em Castellón). Toda a gente quer ligar para casa e os irmãos Bejang ainda não conseguiram uma vaga. “Também queremos ligar, mas se o nosso amigo diz que está a falar com a família não vamos perturbá-lo”, conta Assan.
Por isso preferem sair e ver se encontram alguma forma de fazer a chamada cá fora. Aguardam que um compatriota que vive em Espanha há 15 anos consiga ir ter com eles e os ajude nesta primeira fase.
Assan ainda guarda o telemóvel no bolso, mas é inútil. Esqueceu-se do aparelho quando teve de se atirar à água para agarrar um colete salva-vidas, lançado pela equipa do Aquarius. “O nosso barco tinha problemas e quando nos resgataram toda a gente queria sair rapidamente.” A confusão era grande, o medo não deixava espaço para pensar.
Dois anos e seis meses de caminho
Assan tem 27 anos e fala pelos dois. Mustafa tem 26 e compreende algumas palavras de inglês, mas só o suficiente para atar as pontas das frases do irmão. Vêm de Faji Kunda, na Gâmbia. O mais velho estudava até ter ficado sem dinheiro para pagar as propinas. “Somos de uma família pobre, que não tem nada.” O mais novo nunca foi à escola, tinha trabalhos incertos como eletricista. Os pais morreram há mais de 20 anos. Têm mais quatro irmãs e outros dois irmãos. “Somos uma família pequena”, explica Assan. Não é ironia: a designação de família numerosa tem padrões bem diferentes naquela zona do globo.
“A Gâmbia é um país pacífico, não há problemas, mas conseguir ganhar dinheiro lá é muito difícil. Foi por isso que saímos, para tentar encontrar algo e ajudar a nossa família que ficou lá.”
Só no ano passado, mais de oito mil cidadãos do pequeno país africano chegaram a Itália e Espanha. Desde 2011, foram já mais de 40 mil os que pediram asilo na Europa. Mais de 70% destes pedidos são aceites, de acordo com um relatório de direitos humanos do Departamento de Estado norte-americano.
Deixaram o país em dezembro de 2015. Foram pagando transportes precários desenrascados por traficantes para atravessar o Senegal, o Mali, a Argélia até chegarem à Líbia. “É uma viagem muito dura, muitas pessoas morrem no deserto, sem água.”
Desembolsaram perto de 600 euros para chegar a Trípoli. “Ficámos lá a trabalhar, a juntar dinheiro” para fazer a travessia do Mediterrâneo. Foram dois anos duros. “A Líbia é um país maluco, não é seguro, podes perder a vida a qualquer minuto.”
Trabalho, roubos, prisões e recomeços
Foram roubados várias vezes pelos patrões. “Acordas de manhã, vais a uma rotunda e aparece gente a perguntar se queres trabalhar” – normalmente na construção –, mas por vezes “trabalhas e não te pagam”. Voltavam a juntar os cerca de 1500 euros (cada um) para tentar atravessar o mar, os traficantes ficavam-lhes com o dinheiro e afinal não havia barco algum. Se reclamassem, apontavam-lhes armas.
Assan gesticula muito enquanto fala. Imita uma arma com o indicador. Depois enrola o ar com as mãos para descrever um círculo vicioso. “Pagávamos, ficávamos sem o dinheiro e começávamos de novo.”
Se as autoridades líbias os apanhassem a tentar pagar a um traficante, o destino era a prisão. Aconteceu duas vezes. Os guardas “tratam-te mal, tratam mal os negros na Líbia”. Os relatos são de Assan, com Moustafa a dizer que “sim” no fim das frases. “Vais dormir e quando acordas o amigo ao teu lado pode já estar morto, há muitas doenças nas prisões.” Se ainda sobrar algum dinheiro nos bolsos, tudo se resolve. “Se pagares, deixam-te sair.” As mãos voltam a enrolar no vazio e tudo recomeça.
Depois, há gangues que vivem de apanhar estrangeiros no país e pedir resgates. “Desde que não sejas líbio, se te apanham dizem para ligares à tua família, no teu país, e que eles têm de enviar dinheiro.” Se a família não tiver, como no caso dos irmãos Bejang, tem de recorrer aos vizinhos, tentar juntar a quantia pedida e enviar. É a única forma de os libertarem.
Itália, por fim? “Deus mudou os planos”
No início de junho, dois anos e seis meses depois de começarem a viagem, conseguiram finalmente lugares num barco de borracha. Era a primeira vez que entravam no mar. “Desta vez sei que vou chegar a Itália”, pensou Assan.
Durante a viagem o barco começou a meter água. Ficaram em pânico. Estavam à deriva, só água à volta. Não demorou muito a avistarem um helicóptero. Foram todos resgatados pelo navio Aquarius, operado pela SOS Mediterranée e pelos Médicos Sem Fronteiras.
Nos dias seguintes, somadas as pessoas recolhidas em seis resgates – incluindo por navios italianos que entregaram os migrantes ao cuidado do Aquarius – concentravam-se 629 caras assustadas num navio de 80 metros de comprimento. Ainda havia de nascer mais uma pelo caminho.
Afinal, “Deus mudou os planos”, não era desta que iam para Itália. O impasse pareceu durar eternidades cá fora – enquanto o novo Governo italiano recusava que organizações não governamentais estrangeiras atracassem nos seus portos e Malta recusava ter responsabilidades no acolhimento daquele navio e França se mantinha muda, à medida que uma série de acusações de parte a parte se sucediam como num jogo de "flippers".
Foi uma semana inteira em alto mar até Espanha oferecer o porto de Valência para que atracassem, uma saga que os irmãos Bejang resumem em duas frases: “As pessoas do Aquarius ligaram para Itália e as pessoas de Itália disseram que não nos iam receber. Ligaram para Espanha e as pessoas de Espanha concordaram que viéssemos.” O país ficou de tal modo com boa reputação que Assan se refere ao próprio Aquarius (com bandeira de Gibraltar, gerido por organizações franco-alemãs) como “o barco espanhol”.
Não poupam elogios à equipa que os trouxe – “Dentro do barco têm jornalistas, médicos, tudo, estão a fazer um trabalho perfeito neste mar” – e o sorriso rasga-se em meio segundo quando recordam a chegada a Espanha – “Ficámos muito felizes pela forma como nos acolheram”.
Uma megaoperação com mais de 2.300 operacionais esperava-os no porto. Uma multidão de centenas de jornalistas engrossava a massa humana que viam a partir do navio. Agradecem “ao Governo, ao presidente” e garantem que as condições no centro de acolhimento temporário de Cheste são boas. “Dormimos bem, temos comida boa, tomam conta de nós.”
À procura de uma oportunidade redonda
Ambos jogavam futebol na Gâmbia – Assan é médio defensivo, Mustafa é guarda-redes – e esperam que a bola lhes abra portas na Europa. “Se tivermos uma equipa, podemos mostrar os nossos talentos. Sabemos que somos capazes, temos confiança, sabemos jogar futebol”, garante Assan.
Para o propósito, “qualquer lugar na Europa é bom”, mas dizem que Espanha já era especial há muito, já era a equipa favorita de ambos nos Mundiais de Futebol. “Desde criança que gostava de Espanha. Dizia aos outros rapazes que um dia iria para Espanha, mas não tinha dinheiro para pedir um visto. Por isso fizemos este caminho e arriscámos. Deixámos tudo nas mãos de Deus. E Deus atendeu-nos.”
Ao contrário dos outros migrantes que chegam às costas espanholas, cada vez em maior número, os que vieram no Aquarius têm uma autorização extraordinária de permanência no país, por razões humanitárias. Assan não hesita quando lhe perguntamos se sabe o que o espera daqui para a frente. “Deram-nos os documentos, quando os 45 dias terminarem vamos à polícia e pedimos asilo.”
Sabem que “quem quiser pode ir para França”. O Governo de Emmanuel Macron abriu essa possibilidade e há técnicos dos serviços de imigração franceses a trabalhar com as autoridades espanholas, embora não se saiba ainda exatamente quem vai ter esse direito.
Metade das 630 pessoas que chegaram mostraram vontade de ir. Assan e Mustafa asseguram que querem ficar. “Eu escolho viver aqui e o meu irmão também.” Porquê? Mustafa responde com uma frase inteira pela primeira vez, como se Espanha fosse gente e se materializasse à sua frente: “Eu gosto de ti.”
Sabem que o caminho não vai ser fácil, que, “na Europa, tens de estar preparado para tudo”. Assan repesca uma ideia que foi repetindo ao longo da conversa. “Os africanos e os homens brancos… o sistema não é o mesmo. Quando vens para aqui, tens de usar o senso comum, seguir as pessoas e cumprir as suas regras.”
Por agora, ainda têm as reservas de ânimo carregadas pela chegada de domingo. Neste momento, sentem-se os pontas-de-lança da família Bejang e só querem ligar para casa a dar a boa notícia.