04 jul, 2018 - 16:04 • Catarina Santos
O tornado começou a formar-se com a saga em volta do Aquarius. Poucos dias depois, já havia um novo caso, o do navio Lifeline. E logo a seguir o Open Arms, que atracou esta quarta-feira em Barcelona.
O ministro italiano do Interior e líder da Liga, de extrema-direita, garante que os portos do país estão definitivamente cerrados para todos os navios de organizações não-governamentais (ONG) estrangeiras que operem no Mediterrâneo Central. O assunto sobressaltou novamente a União Europeia (UE) e dominou o último Conselho Europeu, no final da semana passada.
Uma das medidas do acordo possível alcançado entre os 28 Estados-membros prevê a criação de plataformas de desembarque dos migrantes fora da Europa, em países do Norte de África. Para investigadores que acompanham o tema das migrações há vários anos, a Europa está novamente a reagir à pressa – mais com base em emoções do que em factos.
O sociólogo espanhol Joaquín Arango, conselheiro de políticas migratórias em vários organismos europeus, membro do grupo de peritos EuroMed- 2030 da Comissão Europeia, está especialmente preocupado com o envio dos barcos humanitários para fora da Europa.
“De um ponto de vista legal, moral e político é inaceitável. E vai contra o direito internacional e europeu. Viola o artigo 33.º da Convenção de Genebra, que é a pedra angular do sistema de proteção internacional. E choca com valores e direitos humanos, porque dificilmente serão países seguros. É uma solução que vai diretamente contra a natureza das democracias europeias.”
Arango é também diretor do Centro de Estudos sobre Migrações e Cidadania do Instituto Ortega e Gasset, em Madrid. Passou por Lisboa há dias, onde participou na “Migration Conference”, que reuniu centenas de académicos e peritos no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG).
O sociólogo sublinha que a decisão italiana de fechar os portos viola legislação europeia bem como a lei do mar. Também defende que a UE enfrenta a mais grave crise desde a sua fundação. Mais do que a crise do Euro. “Cada vez há mais conivência entre Estados hostis à migração. É uma batalha que se está a perder cada vez mais. Que fará a UE? Cometer suicídio ou tentar sobreviver de uma maneira vergonhosa, negando a sua própria legislação e princípios?”
"Não há qualquer prova" contra barcos humanitários
No final do Conselho Europeu da passada semana, o presidente do organismo, Donald Tusk, sentiu necessidade de enviar “uma mensagem clara a todos os barcos, incluindo os de ONG que operam no Mediterrâneo: devem respeitar a lei e não devem obstruir as operações da guarda costeira líbia.”
Desta forma, Matteo Salvini, o ministro italiano do Interior, encontrou legitimação para os seus argumentos, com a argumentação de que as ONG colaboram com os traficantes e operam onde não devem a ser transposta para o órgão máximo que reúne os líderes dos Estados-membros.
De passagem pelo ISEG para apresentar um estudo sobre o tráfico de seres humanos naquela rota, o investigador italiano Salvatore Coluccello considera que estamos perante “uma resposta irracional à ascensão do populismo", em que, "de certa forma, quase se apoia o que estão a dizer, não se tenta realmente contradizer”, aponta à Renascença.
Coluccello não vê qualquer fundamento na acusação de Salvini, legitimada por Donald Tusk, de que as ONG estão a agir fora da lei. “Não há qualquer prova de que haja uma relação entre os contrabandistas e estes barcos. Houve alegações e isto é o que o novo Governo italiano está a tentar passar”, defende.
Conhecedor profundo do tráfico na zona, defende que “as ONG estão a fazer um ótimo trabalho - na verdade, preencheram um vazio deixado pela União Europeia no resgate de migrantes no Mediterrâneo. Esta operação Sophia e a Triton, da Frontex, têm mais a ver com controlo de fronteiras do que com busca e salvamento de migrantes”, sublinha.
Quando o Aquarius estava prestes a atracar em Valência, David Noguera, diretor dos Médicos Sem Fronteiras de Espanha, garantia que as organizações que operam no Mediterrâneo não iriam desistir facilmente. “Os Médicos Sem Fronteiras são gente persistente. Ainda esta semana nos bombardearam um hospital no Iémen e abrimos de novo. Avaliaremos e faremos o que pensamos que é melhor para os mais vulneráveis, que é o nosso critério. E faremos isso como sempre fizemos, respeitando a lei”, assegurava.
Noguera ainda não sabia se o Aquarius teria condições de regressar ao Mediterrâneo, mas definia linhas vermelhas claras para o diálogo. “Os Médicos Sem Fronteiras nunca vão estar numa mesa de negociações onde se discuta se se deve resgatar gente no mar ou não. Esta negociação não tem sentido. A resposta é sim. Sabemos que é um problema complexo, global, mas há que acabar com este nível de mortalidade e sofrimento.”
A velha ideia de Aznar ganha forma
Os factos não impediram que o discurso anti-migrantes conseguisse, em poucas semanas, forçar uma nova tomada de posição europeia. Javier de Lucas Martín, diretor do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Valência, antevia este desfecho logo após a chegada do Aquarius à sua cidade. “Itália conseguiu criminalizar os barcos das ONG e toda a batalha contra o Aquarius fez parte disto.”
Duas semanas depois, o académico já receava o que sairia do Conselho Europeu, uma ideia que, relembra, não é nova. “O pior que pode acontecer é que se confirme, no Conselho Europeu de junho, algo que o Governo de [José María] Aznar já tinha tentado em 2002 e que Itália e que outros países tentaram, que é externalizar os 'hotspots' e os campos de receção de refugiados e de migrantes irregulares.”
O que mais surpreende os académicos que estudam o tema das migrações é a forma como o Governo italiano conseguiu ficcionar uma emergência, como se estivéssemos perante um novo aumento do fluxo migratório no Mediterrâneo Central. Na verdade, as chegadas de migrantes baixaram mais de 70% em comparação com o mesmo período no ano passado. Os dados são da Frontex, a Agência Europeia da Guarda e Costeira de Fronteiras.
João Peixoto, sociólogo, professor no Instituto Superior de Economia e Gestão e um dos organizadores da conferência sobre migrações em Lisboa, vê com preocupação este desenhar de políticas com base no medo. “Acho que grande parte da opinião pública hoje sente medo em relação ao tema das migrações porque há quem fale em invasão, fala-se na questão do terrorismo e, muitas vezes, são mitos irracionais, que não fazem sentido. É bom distanciarmo-nos, pensarmos com mais calma. As boas políticas públicas não podem ser feitas apenas em nome da emoção, do medo ou do ganho eleitoral a qualquer custo.”
A nebulosa em torno do dinheiro para África
Tal como o acordo de 2016 com a Turquia fez diminuir abruptamente o número de chegadas de migrantes e refugiados à Grécia, a diminuição do fluxo no Mediterrâneo Central é também consequência das políticas que a UE foi implementando em África desde o ano passado.
O Fundo Fiduciário para África contava já com 2,5 mil milhões de euros para apoiar mais de 140 projetos de desenvolvimento nos países de origem e de trânsito, para proteger migrantes e refugiados ao longo da rota e combater as redes de traficantes. No último Conselho Europeu foi anunciado um reforço de mais 500 milhões de euros.
“O Fundo Fiduciário da UE é a resposta, mas é necessário haver verificação, perceber como vai funcionar. E monitorizar as pessoas. Tem havido muitas críticas sobre a forma como este dinheiro está a ser gasto”, sublinha à Renascença Salvatore Collucello, que investigou as redes criminosas que operavam entre a Líbia e Lampedusa em 2007, muito antes de se falar em “crise migratória”, quando o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi tinha acordos com o então ditador líbio Muammar Kadafi para travar os migrantes.
O autor do estudo “Out Of Africa - O negócio humano entre a Líbia e Lampedusa” aponta que um dos maiores problemas é a nebulosa que tradicionalmente envolveu os fundos que circulam para África. “Uma das dificuldades para os investigadores em Itália é a falta de colaboração da Líbia, durante muito tempo. A menos que se livrem destas pessoas corruptas, que tiram partido da situação para seu benefício, eu não estou 100% otimista” quanto à eficácia dos planos da Europa para a região.
O diretor do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de Valência, Javier Martín, vê a aposta da UE na Líbia com muita apreensão. “A Líbia é o exemplo do que não se deve fazer, porque não é um Estado, está destruído, estamos a colaborar com forças militares que não se distinguem das máfias, a polícia das costas líbias trabalha com barcos cedidos por Itália, mas colabora com as máfias, segundo todos os testemunhos”, sustenta.
“Na Líbia sabemos que se violam as mulheres, se agridem e exploram os homens e para as crianças há mercados de escravos, que recordam as rotas que, desde o deserto, iam dar aos portos negreiros”, recorda o diretor do Instituto de Direitos Humanos valenciano.
O que acontece para lá do Mediterrâneo fica para lá do Mediterrâneo
Há uma semana, a Associated Press denunciava que, nos últimos 14 meses, a Argélia já forçou mais de 13 mil migrantes a atravessarem o deserto, sem comida nem água, em direção ao Níger. E que as expulsões em massa tinham piorado em outubro de 2017, quando a União Europeia reforçou a pressão sobre os países do Norte de África para que impedissem requerentes de asilo de partirem rumo à Europa pelo Mediterrâneo ou pelo sul de Espanha.
Não se sabe quantos migrantes e refugiados morreram no caminho, antes mesmo de chegar a essa região. A rota do Mediterrâneo central é a via marítima mais mortífera (só no último fim-de-semana morreram mais de 200 pessoas), mas estima-se que o deserto do Sahara seja ainda pior - sem câmaras para registar os corpos. A organização Internacional para as Migrações e a ONU admitem que cerca de 30 mil pessoas tenham morrido à fome e à sede, naquela travessia, desde 2014.
Esse é o problema com o lado de lá do Mediterrâneo, sublinha Salvatore Coluccello: o que ninguém sabe. “Precisamos mesmo de olhar para as causas que estão na raíz do problema e perceber que estamos a falar de seres humanos, são crianças, mulheres, que estão em muitos casos a fugir de guerras, perseguições, violência, de ambientes políticos muito instáveis. Eles precisam de uma resposta.”