04 jun, 2019 - 12:57 • Filipe d'Avillez
O cenário idílico desta aldeia suíça, situada em cima de um lago e rodeada de montanhas cheias de neve, contrasta com a história de combates no deserto da Síria. Mas foi nestas mesmas montanhas que começou a história de Johan, o suíço que foi para a terra dos seus antepassados treinar uma milícia para combater o autoproclamado Estado Islâmico e que agora se senta calmamente para conversar com a Renascença sobre a sua experiência.
Os seus pais, cristãos da Igreja Siríaca Ortodoxa, saíram da Síria e da Turquia para procurar uma vida melhor e acabaram por se fixar na Suíça. Foi lá que Johan nasceu e, como qualquer jovem suíço, teve de cumprir serviço militar.
“Ao princípio não gostei, mas depois decidi encarar como uma nova educação e comecei a gostar cada vez mais. O meu instrutor deve ter visto algo em mim, porque no final convidou-me a continuar e acabei por servir cinco anos como sargento”, explica.
Especializou-se em infantaria de montanha, nas forças especiais e tornou-se ele próprio instrutor. Em 2011, quando acabou o contrato, começaram os primeiros protestos pela democracia na Síria. Há anos que o seu pai, um ativista pela causa dos siríacos, o desafiava a ir conhecer a sua terra ancestral e por isso decidiu ir para ver com os seus olhos o que se passava.
“Toda a gente falava da Síria sem lá meter os pés, o que é um erro. Foi por isso que decidi sair da Suíça durante cerca de seis meses, para ver o que se passava. Mas as coisas não correram como esperava”, explica.
O regime de Bashar al-Assad estava determinado em não permitir que a Primavera Árabe chegasse ao país e reprimiu as manifestações. Criou-se uma espiral de violência e militares dissidentes formaram o Exército Livre da Síria.
“Inicialmente eu apreciava o que o Exército Livre estava a fazer. Mas depois começámos a vê-los a gritar ‘Allahu Akhbar’ em cada ataque e percebi que isto ia mudar e tornar-se outra coisa”, recorda. Com o seu povo ameaçado de vários lados, tomou a decisão de ficar indefinidamente na Síria.
“O meu povo estava ali e tinha a oportunidade de finalmente alcançar alguma coisa ao fim de 2.000 anos”, diz. Abandonados pelo regime e com os jihadistas nas redondezas, o povo de Qamishli – cristãos, curdos e árabes – decidiu tomar o destino nas mãos e formou estruturas militares e políticas para governar o território.
Johan não duvida que os outros cristãos no país preferiam este modelo, que se orgulha de ser democrático, se pudessem escolher. “Os cristãos na Síria não estão contentes com o regime, estão controlados. Beneficiam de uma falsa proteção, em troca de controlo. Claro que se tiverem de escolher entre os rebeldes e o regime, vão escolher o regime, porque os outros só lhes oferecem a degolação. É uma escolha fácil”, diz.
“Se o regime nos desse a oportunidade de mostrar às pessoas que existe uma escolha… Mas isso não vai acontecer”.
O seu pai tentou. Em 2013 tentou chegar a uma região dominada pelo regime onde vivem muitos cristãos, mas à chegada tinha a polícia secreta à espera. “Disseram que o tinham levado para interrogatório, depois que ia ser enviado de volta para Qamishli. Quando não apareceu disseram-nos que tinha morrido inesperadamente. Nunca nos mostraram o corpo”, explica Johan. Ainda hoje não sabe se o pai está vivo ou morto.
Nessa altura já Johan tinha decidido colocar a sua experiência militar ao serviço do seu povo, ajudando a treinar os primeiros voluntários do Conselho Militar Siríaco, que iria combater ao lado das milícias curdas e árabes, assegurando a autonomia das suas terras e defendendo-as das incursões jihadistas sob o nome de Forças Democráticas da Síria.
“Tinha alguns veteranos do regime de Assad, mas era como começar do zero. A formação militar que eu tinha recebido era tão diferente da deles, era como ensinar-lhes uma nova língua”, explica.
Reacender a chama de um povo guerreiro
Os cristãos indígenas desta região do Médio Oriente são conhecidos como siríacos, assírios ou caldeus. São três nomes para um só povo, herdeiro do grande império Assírio, uma das grandes civilizações da antiguidade.
Transformados em minoria depois das invasões árabes que se seguiram à implementação do Islão, passaram a ocupar lugares secundários nas suas sociedades, destacando-se pelo seu nível de educação, mas não pelas capacidades guerreiras. Perante a instabilidade que se tem feito sentir na Síria, a ideia de pegar em armas não ocorre naturalmente aos cristãos e as autoridades religiosas, por exemplo, têm sido renitentes em apoiar qualquer esforço nesse sentido.
“Há cem anos não éramos um povo guerreiro, mas há 2.000 anos sim. Tentámos recuperar esse sentimento”, explica Johan.
Perante a ameaça imediata de grupos jihadistas o mais difícil, diz, não foi convencer os seus correligionários a combater. “O mais difícil foi mostrar-lhes que a situação de base já era má, isso é que foi complicado. Combater, tudo bem, mas por quê?”, explica.
“Pode-se conduzir as pessoas para a guerra e deixá-las combater, isso é fácil. Mas se não sabem pelo que é que combatem, então temos um problema. Um dia deixamos de combater o Estado Islâmico e temos mil pessoas, com formação militar, que se podem virar contra nós, porque não têm objetivos, transformam-se num gang”.
E que objetivo era esse? “Nunca quisemos criar uma nova nação. Só quisemos ser reconhecidos como um povo na nossa terra”, diz.
Ingenuamente pergunto-lhe quem mais, com experiência militar, o ajudou a preparar esta milícia para a guerra. Ri-se e explica que o único com experiência militar a sério era ele. Mais tarde chegaria ajuda e formação americana, mas no início, sozinho, treinou uma milícia inteira e rapidamente encontrou-se na frente de batalha.
Pergunto-lhe se esperava que viessem mais voluntários de fora, como ele, mas abana a cabeça. “Preferi ver as pessoas da Síria a pegar em armas. O grande desafio era mudar mentalidades e fiquei muito satisfeito em ver vários jovens a juntar-se ao Conselho Militar Siríaco. Não estávamos preocupados em trazer pessoas de fora, se alguém quisesse vir, seria bem-vindo, mas queríamos combatentes locais, porque esses é que vão ficar no território”, diz.
“Os curdos receberam milhares de voluntários. E onde é que estão agora? Foram-se embora. Não faria sentido termos mil jovens siríacos a vir de fora para combater e depois partir outra vez. O que nós queríamos era um compromisso estratégico, de longo prazo.”
Durante o seu tempo na linha da frente defrontou o Estado Islâmico e, antes, a Frente al-Nusra, também jihadista. Em ambos os casos sabia o que lhe aconteceria se fosse capturado. Decapitação, diz, passando o polegar pela garganta.
“Os da al-Nusra eram fanáticos e estavam cheiinhos de droga. Era muito difícil abatê-los, combatiam como mortos vivos, sem medo, sem fome, sem frio no inverno”, diz Johan.
“O Estado Islâmico era diferente, era um movimento ideológico, apoiado por muitos países e por isso muito mais profissional. Vocês viram o que eles fizeram, era muito difícil combate-los, sobretudo por causa do equipamento que tinham, não era normal. Os sistemas de túneis, a tecnologia, coisas que nem dá para acreditar. E claro que estas coisas vinham de países fortes, incluindo a Turquia”.
O apoio da coligação internacional, liderada pelos Estados Unidos, acabou por ser crucial para garantir a derrota final do Estado Islâmico, pelo menos em termos de ocupação territorial, em março de 2019. As forças internacionais deram formação e o importantíssimo apoio aéreo, mas os combates no terreno foram travados pelas Forças Democráticas, a grande custo. A vitória costuma ser atribuída às forças curdas, mas os siríacos estiveram sempre lado-a-lado com eles e Johan não tem dúvidas de que mereceram o respeito dos seus camaradas curdos.
“Tinham muito respeito por nós. O Conselho Militar Siríaco é muito respeitado pelo YPG e pelas outras forças militares, porque eles viam como nós estávamos prontos para tudo. E não tem só a ver com as forças militares, há muito respeito por aquilo que somos enquanto povo”, diz.
Vitória sim, paz (ainda) não
A declaração do fim do “califado” do Estado Islâmico traz-lhe satisfação, mas sabe que a paz na sua terra ainda está longe. “Territorialmente está feito, mas ainda não acabou. É bom dar esperança às pessoas, para poderem começar uma nova vida, uma nova educação, um novo futuro com perspetivas melhores. Mas a guerra ainda não acabou”.
São muitas as ameaças. Para além de células de guerrilha dos jihadistas, há o regime de Damasco de um lado, que não quer ver vingar a noção de uma federação igualitária, que valoriza as identidades de cada grupo étnico e religioso, e a Turquia, uma ameaça constante, que considera as forças curdas terroristas e não aceita qualquer forma de governo ou força militar em que estas tenham um papel de destaque.
Apesar de tudo, Johan acredita que o projeto tem pernas para andar. “É a única maneira de garantir a sobrevivência das minorias. A nossa política é baseada nas minorias e não na ideia de uma só família, uma só nação. Pudemos ver o que resultou dessa ideia”, diz, referindo-se à fragmentação da Síria.
“O nosso projeto dá esperança às pessoas para criarem uma nova vida, criando condições para sunitas e xiitas viverem juntos, muçulmanos e cristãos. É um grande exemplo de democracia. Por isso tem de sobreviver, caso contrário o Médio Oriente será um desastre durante os próximos mil anos. Nem em mil anos nos livraremos desta guerra”.
As Forças Democráticas da Síria são um exemplo de como se podem ultrapassar essas desconfianças históricas. Contudo, é um equilíbrio nem sempre fácil de manter. “Eu confio nos curdos como eles confiam em mim. Mas é política. Confio nos representantes dos curdos e no seu ideal. Respeito esse ideal, mas não sigo as pessoas. Enquanto forem fiéis a esse ideal, podemos fazer alguma coisa pelo povo. Se mudarem esse ideal, é a eles que se traem, não a mim”, explica.
Encontros imediatos
Foram muitas as ocasiões em que Johan temeu pela vida, mas uma em particular ficou-lhe na memória. “Eu e três curdos das YPG íamos patrulhar uma aldeia, ver o que se passava, para depois voltar para o nosso grupo de assalto. A nossa informação era de que a aldeia estava livre de jihadistas, mas na verdade estava cheia deles.”
Isto foi em 2013, antes do apoio das forças ocidentais. “Não tínhamos óculos de visão noturna, só tínhamos um rádio entre os quatro, para contactar com o outro grupo. Estava tão escuro, e tanto nevoeiro, que nem reparámos que havia outra patrulha de jihadistas a caminhar na nossa direção.”
Johan estava à direita do seu grupo e a dada altura embateu no ombro de alguém. Rapidamente os grupos perceberam que não estavam do mesmo lado. “Por causa da minha formação, usava sempre a minha arma à minha frente, e não por cima do ombro. Dei um passo para trás e outro para a esquerda e comecei a disparar. Um dos meus camaradas foi atingido logo e lá ficou”, recorda.
Tinha conseguido sobreviver à troca de tiros, mas o cenário era negro. “Tínhamos de tentar escapar, mas o nosso grupo estava a 500 metros, no deserto e nós não tínhamos equipamento de orientação, estávamos às escuras, no nevoeiro, perdidos uns dos outros e de repente toda a aldeia sabia que se passava alguma coisa e estavam à nossa procura.”
“Não sei bem como consegui escapar. Andei pelo deserto, nem sabia em que direção, mas felizmente, exceto o que morreu logo, todos os safámos. Mas essa foi uma das vezes em que cheguei mesmo a pensar que estava feito”.
O regresso
Durante todo este tempo Johan não voltou para a Suíça. Nem o poderia fazer. Tinha entrado de forma ilegal na Síria e por só em 2015 é que, com documentos falsos, conseguiu sair pelo Curdistão iraquiano.
Durante esses anos, contudo, as suas atividades não tinham escapado à atenção das autoridades suíças.
Na altura em que se envolveu nos combates na Síria, Johan nem tinha pensado no assunto, mas a verdade é que estava a violar a lei do seu país natal. A Suíça proíbe a participação dos seus cidadãos em forças militares estrangeiras. Apenas admite uma exceção: a Guarda Suíça do Vaticano.
“Quando aterrei na Suíça fui barrado e interrogado. Disseram-me que tinham aberto um processo contra mim, porque tinha quebrado esta regra. Não me trataram mal, pelo contrário, sempre que ia à polícia eles tratavam-me como um homem bom, que tinha feito uma coisa boa.”
Mas a Suíça é a Suíça, e as regras são para cumprir. “Fui a julgamento e no final de fevereiro leram a sentença. O tribunal fez-me um louvor, mas multou-me na mesma, cerca de 500 euros.”
A comunidade juntou-se e pagou a multa, mas recorreram, por uma questão de princípio. O processo tornou-o famoso na Suíça e teve a vantagem de chamar atenção para a causa dos siríacos, à qual se dedica por inteiro agora, regressando com alguma frequência ao Iraque. O tribunal proibiu-o de voltar à Síria.
Mas Johan não foi o único veterano suíço das guerras no Médio Oriente a voltar para casa, houve outros, mas que combateram do lado contrário. “Esses foram julgados por coisas pequenas e alguns continuam a viver na Suíça”, explica.
Não tem medo de, em plena Zurique, por exemplo, dar de caras com um deles? Diz que não é consigo que se preocupa. “É um grande problema para a Suíça. Um grande problema. Eu sei proteger-me, sei como me movimentar, olhar por mim.”
Rodeados por montanhas, a poucos quilómetros de um parque temático chamado “Heidiland”, esta conversa parece absurda. Os problemas do terrorismo islâmico parecem estar a milhares de quilómetros. Mas o Johan sabe que os atentados que têm abalado a ilusão da segurança noutros pontos da Europa podem também manifestar-se aqui.
“Pessoalmente não estou preocupado, não tenho medo, mas tomo precauções. Mas para as outras pessoas, é um problema”, remata o soldado.
A Renascença viajou para a Suíça a convite da União Siríaca Europeia