28 ago, 2019 - 21:01 • Tiago Palma
Foi sem surpresa – Boris Johnson havia-o prometido – que o primeiro-ministro britânico solicitou à rainha Isabel II a suspensão do parlamento britânico e, sem surpresa, a monarca respeitou o conselho do governante. A intenção de Johnson é óbvia: impedir que os deputados travem uma saída do Reino Unido sem acordo. Muito se questionou, entretanto, sobre a legalidade da decisão. Desde logo, surge à vista de todos uma clara imposição do poder executivo sobre o poder legislativo – e sendo o governo de Johnson um governo minoritário, sendo Johnson um primeiro-ministro não-eleito nas urnas, o que se coloca, mais do que a legalidade ou ilegalidade, é a dignidade da própria cultura democrática britânica.
À Renascença, Eunice Goes, investigadora portuguesa na área da política britânica e professora na Universidade de Richmond, em Londres, acredita que só o parlamento, e antes mesmo de vir a ser suspenso, poderá travar o que considera uma “situação política bastante difícil”. Para isso, e mais do que o lugar que a oposição terá, é importante que os conservadores que se rebelaram nos bastidores contra Boris, se assumam agora e votem a favor da moção de censura ao governo. E votarão? “Esta tem sido um bocadinho a história do Brexit: os vários partidos falham em acordar uma estratégia unida. Tem sido essa falta de unidade, de objetivos, entre os vários partidos da oposição que, no fundo, têm permitido que a hipótese da saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo esteja a avançar a uma velocidade estonteante”, explica Eunice Goes.
A posição de Boris Johnson, este pedido de suspensão do parlamento, não é necessariamente surpreendente, até porque foi sempre uma ameaça que o primeiro-ministro colocou nas últimas semanas. O que lhe pergunto é se a surpreende a posição da rainha Isabel II ao aceitar o pedido?
A posição da rainha está completamente em linha com o que é o precedente constitucional. Portanto, é isto que é suposto a rainha fazer: seguir o conselho do primeiro-ministro. Poderá é haver alguma ambiguidade na interpretação das convenções. Estas são convenções que foram criadas tendo em conta um governo maioritário, não foram pensadas para governos minoritários. E aí poderá dizer-se que a rainha, no fundo, deve a sua lealdade ao parlamento e deve seguir a opinião e os desejos do parlamento. E estamos na situação única onde temos um parlamento a pensar de uma maneira e um primeiro-ministro a pensar de outra maneira. A monarca comportou-se de uma maneira impecável do ponto de vista constitucional. Politicamente é que há espaço para interpretar a sua decisão de outras maneiras.
As opiniões dos especialistas dividem-se quanto à legalidade do pedido de suspensão do parlamento. O que me parece é que o primeiro-ministro se preparou bem e precaveu – daí ter pedido aconselhamento legal ao procurador-geral Geoffrey Cox. Mas é quase unanime dizer que a decisão de Boris Johnson significa uma imposição clara do poder executivo sobre o poder legislativo. Concorda?
Exatamente. Isto é uma demonstração da imposição executiva sobre o poder legislativo. O que não é novo no Reino Unido: o sistema político de Westminster é fundado precisamente nessa premissa, de que quem manda é o executivo, normalmente apoiado por uma maioria parlamentar. E é nesta situação única que nos encontramos agora. Portanto, do ponto de vista constitucional, ele [Boris Johnson] tem a constituição do seu lado. No entanto, a situação, a decisão, do ponto de vista político e democrático, é altamente controversa. Porquê? Porque este é um primeiro-ministro que foi eleito por noventa mil cidadãos, todos membros do partido Conservador, porque este é um primeiro-ministro que não comanda uma maioria no parlamento, que está à frente de um governo minoritário, um primeiro-ministro que foi ao parlamento uma única vez desde que assumiu o cargo, um primeiro-ministro que no entretanto passou as últimas semanas a fazer uma série de anúncios de novas medidas, de medidas de aumento da despesa pública, sem nunca prestar contas ao parlamento. E o grande princípio constitucional britânico é o da soberania do parlamento. Portanto, o parlamento deve ser a instituição que está ao centro da atividade política britânica. Ora, ao anunciar a suspensão do parlamento sem o parlamento ter sido consultado, e anunciando-o claramente à revelia dos desejos da maioria dos parlamentares, Boris Johnson está a colocar o país numa situação política bastante difícil e questionável do ponto de vista de cultura democrática.
Uma coisa que eu consigo perceber pelas reações que se foram sucedendo é que, mesmo no Partido Conservador – a posição trabalhista seria mais ou menos óbvia –, há muita gente que se opõe à decisão do primeiro-ministro. O deputado Dominic Grieve, por exemplo, apelidou esta decisão de Johnson de “chocante” – e falou mesmo na hipótese de o Governo cair em resultado de moção de censura.
A possibilidade de uma moção de censura ao governo é forte e especialmente forte desde ontem, porque ontem os partidos da oposição reuniram-se todos e estão a tentar acordar uma estratégia para, precisamente, evitar a saída do Reino Unido da União Europeia sem o acordo. E, evidentemente, um dos cenários que se tem falado, que se falou o Verão todo, é o do voto de uma moção de censura ao governo. Quando Boris Johnson se tornou primeiro-ministro, ele demitiu uma série de ministros, figuras muitíssimo importantes no Partido Conservador – que estão a arregaçar as mangas para criar o maior número de problemas ao seu governo. Dominic Grieve é uma das figuras, Philip Hammond, o antigo ministro das Finanças, também, há também Rory Stewart. Portanto, há muita gente na bancada conservadora que vai votar contra o governo. Ora, este é um governo minoritário que tem nesta altura, contando com os votos todos conservadores, uma maioria de um deputado. Portanto, não há maneira nenhuma de Boris Johnson conseguir aprovar a legislação que pretende ou de passar a moção de censura. O que poderá travar a moção de censura, e esta tem sido um bocadinho a história do Brexit, é se os vários partidos da oposição falharem em acordar uma estratégia unida. Tem sido essa falta de unidade, de objetivos, entre os vários partidos da oposição que, no fundo, têm permitido que a hipótese da saída do Reino Unido da União Europeia sem acordo esteja a avançar a uma velocidade estonteante – e é provavelmente o cenário mais provável que vai acontecer a 31 de outubro.
Esta suspensão tira muita margem de manobra, sobretudo em termos temporais, ao parlamento para impedir uma saída abrupta, sem nenhum acordo. No entanto, e falando concretamente da moção de censura, a mesma poderá ainda ser apresentada já em setembro, no dia 4. Acredita que se for travado este intento de Boris Johnson, e se o governo cair, esta data pode mudar o decurso do Brexit? Pode evitar um “no-deal”?
Sim, acho que sim. Os deputados regressam no dia 3. E todos os dias, até ao 9 de setembro, vão ser dias de intensa atividade parlamentar. Inclusive, o porta-voz do parlamento, John Bercow, está disposto a manter o parlamento ativo, o parlamento paralelo. Se o parlamento encerrar de facto para quatro semanas e meia, que é improcedente na história do parlamento britânico dos últimos 150 anos, vamos estar aqui a viver um momento não só crise política mas quase de uma crise constitucional.
Nas últimas horas surgiu uma petição contra esta suspensão parlamentar, uma petição que a cada hora que passa vai aumentando o número de assinaturas – vai já quase em 700 mil assinaturas. Esta petição poderá ter algum poder legal imediato? Ou é irrelevante no imediato e não pára os intentos de Boris Johnson?
A petição precisa de atingir um certo número de assinaturas, cem mil assinaturas, para ganhar o direito a ser debatida no parlamento. Portanto, esse é o único poder legal que a petição tem. Se ultrapassar o milhão de assinaturas, conduz imediatamente a um debate parlamentar. A questão é: para quando é que esse debate vai ser agendado? E no sistema britânico temos a particularidade de que é o governo do dia que controla a agenda legislativa. Portanto, o governo poderá bem decidir que este debate parlamentar sobre a petição só terá lugar em janeiro do próximo ano. E acaba por contornar a petição.
Há ainda outra hipótese, parece-me. Partindo do princípio que o governo não cai, partindo do princípio que a suspensão avançará, partindo do princípio que há uma saída sem acordo, haverá a possibilidade de o parlamento levar este governo a tribunal por desrespeitar a vontade dos parlamentares eleitos. Mas a verdade é que para a União Europeia, consumada a saída britânica, isso acaba por ser irrelevante. Podemos é ter aqui um problema político grande no Reino Unido – para além de todos os problemas económicos que um “no-deal” trará –, não?
Essa é uma hipótese, sim. Mas acho que é uma hipótese bastante curta. Porque é importante também lembrar que o sistema judiciário, o poder judiciário, no Reino Unido é subalterno ao parlamento. Portanto, os tribunais podem fazer apenas algumas coisas, não podem evitar ou proibir o parlamento, a maioria parlamentar, de fazer o que a maioria parlamentar quer fazer. Evidentemente a situação, do ponto de vista político, será altamente embaraçosa para o governo e, quer dizer, isto são todos os sinais de uma crise política e democrática bastante grande. E sintomas também de uma crise constitucional. Isto é uma constituição que não está a funcionar como era suposta funcionar e onde, acima de tudo, as pessoas, os atores políticos principais, não sabem muito bem quais é que são as regras do jogo, ninguém sabe muito bem, porque isto são regras completamente arcanas, com vários séculos, baseadas em convenções que podem ser interpretas de mil-e-uma maneira. E a situação em que o Reino Unido se encontra atualmente é uma situação extremamente única.
Uma última pergunta: a verdade é que não temos memória, pelo menos neste século, de isto acontecer. Mas uma situação idêntica, uma prorrogação, não aconteceu assim há tanto tempo. Aconteceu em 1997, com o antigo primeiro-ministro John Major, uma prorrogação que resultaria na queda do executivo de Major e na eleição de Tony Blair. Mas era uma questão diferente, tratava-se de um escândalo relacionado com Mohamed Al-Fayed e a presença de lobistas no parlamento. Esta prorrogação, do primeiro-ministro Boris Johnson, terá mais custos para os britânicos -- sobretudo de ocorrer uma saída sem acordo. Concorda?
Evidentemente. A prorrogação que foi anunciada hoje é mais longa, são quase cinco semanas de prorrogação – o parlamento nunca esteve encerrado durante tanto tempo, normalmente era à volta de três semanas. E em política o contexto é tudo: e o contexto não é muito benéfico. O país está altamente dividido, temos um calendário, uma data de 31 de outubro, onde o Reino Unido poderá sair da União Europeia sem acordo, portanto, se não houver acordo é isso que vai acontecer e isso será uma decisão que trará consequências muito sérias para a economia, para a sociedade, para a cultura do Reino Unido. Portanto, o contexto é que torna esta decisão controversa.