04 out, 2019 - 23:35 • José Bastos
Nunca um “impeachment” foi tentado a pouco mais de um ano de eleições presidenciais norte-americanas. Os dois últimos processos de destituição tiveram lugar já a meio de segundos mandatos de Nixon e Clinton quando os incumbentes já não aspiravam à reeleição. Assim, o “impeachment” contra Donald Trump poderá ser, tudo o indica, o fator-chave das presidenciais de 3 de novembro de 2020.
Pode ser o pretexto ideal para Trump mobilizar as temíveis bases eleitorais “jacksonianas”? Acabará por rebentar nas mãos dos democratas que voltaram a ter maioria na Câmara dos Representantes não com a ameaça de destituição, mas com um discurso assente na saúde, crise climática e desigualdades, temas do quotidiano do eleitor? Que efeitos terá na aplicação futura do ponto mais grave previsto constitucionalmente: afastar sem eleições o presidente em exercício?
As incógnitas são muitas e pretexto para a análise de Diana Soller, investigadora do IPRI-NOVA e coautora com Tiago Moreira de Sá do livro “Trump: O Método no Caos”.
“O impeachment vai desviar a atenção das medidas concretas num quadro que favorece Trump”, defende a investigadora e especialista na política norte-americana.
Diana Soller não vê como provável a destituição de Trump. “Não me parece que os senadores estejam dispostos a aprovar o impeachment a um presidente do seu próprio partido sem uma prova cabal da existência de traição ou corrupção”, defende em entrevista à Renascença apontando à maioria republicana no Senado.
A ideia do “impeachment” há muito estava presente no discurso político. Ser quase um ato anunciado não o banaliza? Como se chegou até aqui?
Poderá haver uma de três razões. A primeira, de que nunca nos lembramos por ser a mais óbvia, é a do Presidente Donald Trump ter mesmo cometido um crime. Quando falamos de “impeachment” estamos sempre a falar de um crime político e há, de facto, a possibilidade da Câmara de Representantes ter tido acesso a fortes indícios para a democrata Nancy Pelosi, speaker da Câmara, abrir o processo.
Essa é a razão legítima. No fundo deveria ser a única para se mover um processo de “impeachment” contra o Presidente Trump ou qualquer outro presidente. Depois há mais duas possíveis razões. Estão interligadas e, do meu ponto de vista, são ilegítimas.
A primeira: como se sabe desde que Trump foi eleito que uma parte significativa do Partido Democrata, em particular a ala mais radical à esquerda, tem pensado no impeachment como arma política em vez de ser uma figura constitucional excecional, afinal, o que impeachment sempre devia ser. Talvez essa ala radical tenha conseguido estender a sua influência ao partido no seu todo e também a Nancy Pelosi. Esta razão seria ilegítima.
A segunda razão ilegítima é a ser simplesmente uma tática política para desacreditar o presidente Trump neste período pré-eleitoral. As eleições serão em novembro de 2020, falta pouco mais de um ano, e é possível que do ponto de vista dos democratas o impeachment cause um desgaste político a Trump que confira aos democratas vantagem nas eleições.
Na hipótese da 'razão legítima' o que terá acontecido? Os indícios serão de tal ordem que mesmo uma democrata moderada como Nancy Pelosi não teve alternativa? O que se vai sabendo não parece sustentar essa hipótese...
A grande novidade política deste processo é a que resulta de Nancy Pelosi ser o rosto anti-impeachment. Pelosi era a figura que se opunha ao uso do impeachment como arma política. Por isso é tão surpreendente que, de repente, num volte-face inesperado Pelosi tenha corporizado a figura que vai impor impeachment a Trump. Na verdade, tinha de ser ela por se tratar da “speaker” da Câmara dos Representantes, mas a surpresa não deixa de vir daí.
Qual será a razão? Há o que sabemos e o que poderemos não saber. Supostamente a razão é a conversa telefónica entre Trump e o presidente Zelenski da Ucrânia em que o presidente Trump terá pedido a Zelenski para investigar o percurso do filho de Joe Biden, o seu mais provável adversário em 2020, nos negócios mantidos em Kiev. Terá havido alguma conversa em que Trump condiciona a ajuda à Ucrânia e o apoio contra os separatistas russos à abertura dessa investigação a Hunter Biden.
Não está em questão tratar-se de uma atitude eticamente errada por parte de Trump, mas para se abrir um inquérito de impeachment terá de haver, pelo menos, uma de três possíveis causas. A primeira é traição à pátria, a segunda é corrupção e a terceira causa é ação dolosa ou ofensa grave. O inquérito do impeachment é um inquérito político e, no momento, as opiniões estão divididas sobre se estes atos de Donald Trump integram ou não algum destes crimes. Tendo em conta a relevância que rodeia a figura do impeachment muito dificilmente este tipo de manobras Trump/Zelenski poderá integrar alguma destas ofensas que conduzam à destituição do presidente.
Como entender então a atitude dos democratas no contexto do que pode ser um erro estratégico a levar ao reforço de Trump ou até do confronto mais alargado entre moderados e radicais até no Partido Democrata?
Há duas questões. A primeira tem a ver com evolução do Partido Democrata onde há uma ala, cada vez mais expressiva, e pela sua natureza a mais barulhenta e a que se faz ouvir mais vezes, que se está a radicalizar e vai no sentido de ainda maior radicalização.
Já se defende que o populismo na América não se esgota só em Trump e à esquerda floresce também com a jovem Alexandria Ocasio-Cortez?
Essa é uma apreciação completamente válida. Nos Estados Unidos o populismo tem origens numa série de problemas de fundo e acabou por se saldar com a eleição de Trump. Trump é mais uma consequência que propriamente uma causa que, por sua vez, levou à radicalização do outro lado do espectro para combater tudo o que Trump representa. A polarização das sociedades é um elemento chave para a existência do populismo.
Nos Estados Unidos chega-se já ao extremo do Partido Republicano apoiar quase todo o presidente Trump - um populista e um nacionalista muito mais nativista do que o habitual - mas, em reação e sem ser em reação, há cada vez mais respostas do outro lado do espectro. Sem ser em reação porque este movimento ganha visibilidade com a candidatura de Bernie Sanders nas presidenciais de 2016. Apesar de Sanders não ter sido eleito na primárias democratas abre-se uma janela para que haja uma ala ainda mais radicalizada, mas ao mesmo tempo uma ala democrata verdadeiramente populista.
Há o exemplo da congressista Ocasio-Cortez e quando ela propôs o famoso "New Green Deal" a maior parte dos analistas, até democratas, vieram dizer que estava em curso uma radicalização muito grande do partido. Na verdade, o "New Green Deal" é um plano grandioso e cheio de boas intenções, mas é inexequível tendo em conta o estado actual de desenvolvimento da economia norte-americana.
Portanto sim. Estamos a atingir a uma muito grande radicalização do Partido Democrata em várias direções e essa ala radical é claramente anti-Trump e podemos sim ter assistido a essa ala ter conseguido cooptar o resto do partido no sentido de usar o impeachment numa tentativa de enfraquecer Trump como arma política e não como uma excepcionalidade constitucional.
Trump reagiu com a virulência esperada, regressando ao argumento clássico "elite corrupta de Washington vs povo" e até usou as expressões "guerra civil" e "tentativa de golpe de estado". Temos aqui combustível para retroalimentar a sua pré-campanha quando até as sondagens não dão uma maioria a favor do impeachment? Não é apenas a "comunidade jacksoniana", base de Trump, referida no livro "O método no caos" que parece estar contra o impeachment...
Há aqui duas questões. A primeira é a reação de Trump. A reação ao processo de impeachment é perfeitamente previsível. Nada há do que tenha dito ou feito que não esteja exatamente assim nos manuais quanto ao que um populista iria imediatamente fazer. E em Trump em parte ganhou as eleições depois de conseguir convencer parte dos americanos da existência de uma elite política e económica corrupta em Washington. Uma elite que volta as costas ao povo e esquece o americano de classe média e média baixa e esse foi um discurso de Trump que colou de maneira expressiva ao ponto de o conduzir à vitória nas eleições.
Este avanço do impeachment dá agora a Trump a oportunidade de se vitimizar e de transformar o processo num argumento de peso a seu favor. Ou seja, as elites de Washington não conseguem atrair o voto dos norte-americanos e o que fazem agora é usar golpes palacianos, 'golpe de estado' foi a expressão usada por Trump, mecanismos como o impeachment que não passam pelo voto popular para destituir o presidente que representa o povo.
No limite este confronto pode levar a 'um momento Joe McCarthy' a expressada usada no livro para descrever um desses ciclos de crise, à exaltação desse confronto povo vs elite?
Donald Trump já é em si mesmo um 'momento Joe McCarthy'. Mas se este impeachment se destina a favorecer os democratas a jogada vai-lhes sair muito cara. Se Donald Trump de alguma maneira já conseguiu convencer parte significativa dos americanos de que é assim o comportamento das elites então se o impeachment não chegar a lado algum - e provavelmente não vai chegar - vem dar razões a Trump. Ele dirá: 'vejam as elites comportam-se como eu sempre disse. É a prova de que mereço a confiança dos americanos e não o candidato democrata seja ele qual for'.
A necessidade de uma maioria de 67 senadores faz com que a destituição seja improvável e, no limite, mesmo removido do cargo Trump pode legalmente concorrer em 2020. Não acredita mesmo na destituição?
É muito, muito improvável. Para perceberem do que estamos a falar o impeachment tem momentos processuais chave. A Câmara dos Representantes já abriu um inquérito depois de ser necessário um voto de maioria simples para esse primeiro passado. Não há surpresa no resultado porque a Câmara dos Representantes é de maioria democrata. Teremos agora pela frente meses de inquérito político em que serão ouvidas testemunhas e analisadas provas e no final será, ou não, deduzida uma acusação. Volto a reforçar por ser importante: será sempre uma acusação política.
Estamos sempre a falar de um julgamento político e não judicial. Se a Câmara encontrar matéria o julgamento político passará para o Senado. No Senado são necessários 2/3 dos senadores para aprovar o impeachment. É muito pouco provável esse cenário se concretize, porque a maioria é republicana. Não me parece que os senadores estejam dispostos a aprovar o impeachment a um presidente do seu próprio partido sem uma prova cabal da existência de traição ou corrupção.
O processo de destituição do Presidente americano (...)
Aconteça o que acontecer a ‘instituição impeachment’ sai abalada?
A ‘instituição impeachment’ já está verdadeiramente abalada. Porquê? Desde a eleição de Trump que uma espécie de espectro do impeachment paira à volta do presidente. Os seus adversários políticos estão sempre à procura e de forma muito pública de matéria para mover um processo de destituição. A ideia de impeachment inscrita na Constituição e pensada pelos 'founding fathers' tem duas preocupações fundamentais. A primeira é a do presidente não estar acima da lei. Se um presidente comete um crime político que não pode ser perdoado então vai ser investigado e julgado.
Mas, ao mesmo tempo, o impeachment é um processo complexo. Houve três tentativas de impeachment e só uma é que acabou, não na própria destituição por ordem do Senado, mas na demissão do presidente Richard Nixon face à iminente condenação. Nixou evitou a humilhação do impeachment. Mas se a primeira razão é evitar o abuso grosseiro de poder era ao mesmo tempo um processo complexo para que, ao mesmo tempo, o presidente não ficasse refém dos caprichos do Congresso do tipo: 'o Congresso não gosta deste presidente' então move-lhe um impeachment'. E desde que Trump foi eleito assistimos à banalização do impeachment. Parece haver uma vontade tão grande de mover um impeachment que quase não importa saber quais são as razões.
Assim, uma figura constitucional tão importante para travar excessos, quer do presidente quer do Congresso, está a ser banalizada nos últimos três anos e provavelmente a banalização vai ser ainda maior porque é muito difícil que este impeachment seja aprovado. Vamos assistir ao crescente desgaste de uma figura constitucional que deveria ser absolutamente excepcional, será falada dia a dia, vai perder importância para travar um presidente que possa cometer um excesso tão grande a tornar intolerável a sua continuidade na presidência.
Do ponto de vista externo defendeu no Observador a propósito da Venezuela que Washington parece ter deixado de poder até organizar a que é, há dois séculos, a sua zona de influência. Com uma América cansada do mundo, como sustentam no livro, a percepção exterior do impeachment não preocupa Trump?
A percepção externa do impeachment não preocupa Trump por aí além. O que se passa é outro fenómeno distinto do impeachment e que está relacionado com, primeiro, a estratégia política de Trump. Por um lado, o retraimento estratégico dos Estados Unidos, em curso desde Obama, e, por outro, uma questão nova colocada por Trump.
Os Estados Unidos eram a potência ordenadora, a potência organizadora do sistema internacional e desde a eleição de Trump a ideia de que os Estados Unidos devem assumir esse papel caiu completamente. Portanto, há muito pouca vontade política de Trump de dar sequência à tarefa.
De resto, no livro também descrevem Trump como um nacionalista e um patriota com uma base de apoio que não tem propriamente uma visão sobre política externa, antes um conjunto quase instintivo de preferências. Não é este processo de impeachment que vai alterar esses elementos quase identitários da personalidade política do presidente na relação com o exterior?
Não. Até pelo contrário. Até por que para Trump fazer o jogo da vitimização já em curso tem de contar com essa base de apoio, esse eleitorado jacksoniano, entre outras com duas características chave: por um lado a lógica anti-elites de Washington, a profunda desconfiança não desapareceu nestes últimos tempos. A desconfiança tende mesmo a aumentar com as sondagens a indicar que uma maioria de americanos não está propriamente contente com o impeachment. Os americanos gostam de alguma previsibilidade institucional sejam os jacksonianos, os republicanos não-jacksonianos ou democratas.
Outra característica é que os jacksonianos tendem a olhar para pessoas que elegem como o presidente Trump como uma espécie de herói jacksoniano. alguém com quem se identificam como sendo um deles. Obviamente, Trump é muito rico, mas em tudo o resto, na atitude, na maneira como muitas vezes desrespeita as elites e poder faz com que seja percecionado como o tal ‘herói jacksoniano’ que as bases estão dispostas a seguir e a apoiar, como escrevemos no livro, até ao fim. A minha convicção é a de que este impeachment vai reforçar essa base de apoio e poderá ainda cooptar votos de americanos indecisos não necessariamente “jacksonianos”.
De resto, no livro explicamos mudanças em curso na sociedade norte-americana a levar a que esse conjunto jacksoniano se alargasse e não fosse só constituído pelo homem da classe média baixa, branco, protestante, devoto, etc… e que passe a ser integrado por elementos de uma classe média muito mais alargada a sentir verdadeiramente que as elites não respondem às suas necessidades, mas apenas às reivindicações das minorias a uma dimensão que os próprios jacksonianos se começam a sentir discriminados.
O ponto 'elite' é aqui muito importante. O que Trump está a dizer é: 'as elites estão a fazer o jogo que eu sempre disse que iriam fazer".
Com o impeachment a desviar o foco de temas caros aos democratas - saúde, educação, alterações climáticas - no limite pode até facilitar a reeleição de Trump em 2020?
Sim. Vai desviar a atenção das medidas concretas num quadro que favorece Trump. O presidente prefere um discurso simples com meia-dúzia de medidas que entrem nos ouvidos, com soundbytes, mais fácil de fazer passar do que a tarefa de quem tenha um programa eleitoral para apresentar com mais conteúdo e sumo e que queira seduzir eleitores através desse programa de uma forma perfeitamente legítima e que devia ser a norma.
Este impeachment cai no discurso de Trump como uma luva. Um mestre na comunicação com o eleitor comum como é Trump não vai deixar passar esta oportunidade. Em última análise vai sair beneficiado.
O cálculo dos democratas - se as razões para o impeachment são as que designo de 'ilegítimas' - vai sair furado, porque está criado o cenário para Trump voltar a ter bons resultados eleitorais muito mais do que o desgaste que os democratas querem imputar ao presidente.
Tudo isto com o custo adicional de banalizar o impeachment, uma figura que deveria ser absolutamente excecional e cria-se condições para que um travão tão decisivo ao abuso de poder desapareça como tal.