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Entrevista

“Aliados passam a duvidar da ajuda de Trump” após abandono dos curdos

08 out, 2019 - 23:23 • José Bastos

No Médio Oriente a decisão de retirar as tropas norte-americanas do leste da Síria permite invasão militar turca, abandona curdos e pode alterar demografia da região para lucro de Ancara, alerta o especialista em geoestratégia José Pedro Teixeira Fernandes.

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Entrevista a José Pedro Teixeira Fernandes sobre a retirada americana da Síria
Ouça a entrevita a José Pedro Teixeira Fernandes

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“Irresponsabilidade”, “traição”, “desastre potencial”. Multiplicam-se as expressões de censura à abrupta decisão do presidente Trump de abandonar à sua sorte contra Turquia os aliados curdos na luta contra o Daesh. Trump mandou retirar as tropas norte-americanas no leste da Síria para abrir caminho à invasão militar turca já anunciada como iminente.

Os qualificativos críticos da decisão são igualmente duros nas fileiras republicanas como democratas, incluindo em aliados próximos da Casa Branca. “A decisão impulsiva do presidente derruba todos os avanços feitos e lança a região no caos”, condenou na Fox News o republicano Lindsey Graham, um dos senadores mais associado ao círculo presidencial. “O abandono dos curdos é um potencial desastre e uma mancha na honra dos Estados Unidos”, reforçou Lindsey Graham. “A retirada é uma traição aos curdos, reforça o Daesh e coloca em perigo os Estados Unidos”, sentenciou o congressista republicano Peter King, num registo semelhante ao dos democratas.

“A decisão de retirar as tropas dos Estados Unidos da fronteira entre a Turquia e a Síria abandona os curdos e é uma traição a um aliado chave na nossa luta contra o Estado Islâmico”, lamentou o senador democrata Tim Kaine que acusou Trump de ter “tomado a decisão contra o conselho dos diplomatas e militares. Agora os curdos estão à mercê da Turquia, das ameaças do governo de Assad, da Rússia e do que resta do Daesh (…) a doutrina Trump continua a ser aplicada: abandona os teus aliados e reforça os teus inimigos”, acusou Tim Kaine.

Para detratores de Trump, como Hillary Clinton, o presidente “traiu os leais aliados curdos”. Mas na Fox News também se escutou o argumento contrário: a traição – herdada de Obama – foi armar uma organização guerrilheira (a filial síria do PKK actuou como infantaria para as acções aéreas norte-americanas) contra um membro da Nato, a Turquia. A última bala curda é a ameaça velada de soltar os elementos do Daesh em seu poder.

O comunicado da Casa Branca em que se anunciava a decisão de retirada das tropas não incluía qualquer referência ao papel dos curdos na luta contra os terroristas do Estado Islâmico, mas numa rajada de tuítes Trump reconheceu serem aliados, mas “receberam montes de dinheiro e equipamento para que o fizessem” menosprezando a ajuda curda. Mais tarde, em resposta ao aluvião de críticas, Trump lançou outra mensagem assegurando que se a Turquia fizer algo que considere inaceitável na sua “grande e inigualável sabedoria” (transcrição literal) “destruirá por completo a economia turca.

Acossado pela investigação em curso no Congresso para o impeachment, Trump poderá estar a acelerar o cumprimento de algumas promessas de campanha, daí a retirada das tropas na Síria para validar o seu compromisso de retirar o país de “guerras intermináveis, muitas delas guerras tribais e trazer os nossos soldados para casa”.

Mas a que custo para o Médio Oriente e para a relação dos Estados Unidos com os seus aliados? Esta é uma das perguntas para José Pedro Teixeira Fernandes, professor universitário nas áreas das Relações Internacionais e Estudos Europeus, especialista em geoestratégia, investigador do IPRI-NOVA e autor do livro “Geopolítica em tempo de paz e guerra”, da Almedina.

José Pedro Teixeira Fernandes alerta para o risco da decisão de Trump “introduzir um elemento de maior confusão no Médio Oriente” e antecipa a possibilidade de Erdogan ter planos de alterações profundas na demografia da região em nome da segurança turca. Afinal, o presidente turco pretende instalar no leste da Síria mais de 3 milhões e refugiados, provavelmente, com o custo de milhares de curdos terem de fugir de casa ou ficar em minoria.

A ONU, de resto, já alertou para os riscos de novas tensões demográficas. Panos Mumtzis, coordenador humanitário das Nações Unidas para a Síria foi taxativo: “Esperamos o melhor, mas estamos preparados para o pior”.

Trump está a levar a cabo uma mudança dramática na política dos Estados Unidos para o Médio Oriente ao permitir que tropas turcas entrem na Síria e entrega aos aliados curdos às maõs do inimigo Erdogan. Como se lê esta decisão?

É mais uma decisão estranha e confusa de Trump. Não diria que é totalmente supreendente no sentido em que a trajetória da política externa de Donald Trump tem já decisões estranhas e pouco expectáveis e neste caso já havia intenções conhecidas dos Estados Unidos abandonarem a Síria. Intenção já manifestada com Donald Trump na Casa Branca a gerar na ocasião, bastante contestação e talvez por isso mesmo seguiu-se depois um recuo na decisão. Mas este parece ser sempre um padrão muito errático, muito sem pensamento coerente, ao sabor também provavelmente da política interna dos Estados Unidos na perspetiva do ano eleitoral que se aproxima e do impacto de decisões deste tipo no eleitor médio norte-americano a ver com bons olhos o regresso a casa dos seus soldados.

Claro que no plano estratégico e político a decisão de Trump levanta questões várias. Enuncio algumas: desde logo o comprometimento dos Estados Unidos com os seus aliados curdos, neste caso, fundamentais na Síria para o combate ao Daesh, ao Estado Islâmico. A decisão tem naturalmente implicações em todos os aliados dos Estados Unidos no Médio Oriente e em outras partes do mundo.

Depois a própria questão da guerra da Síria e dos seus desenvolvimentos porque para todos os efeitos, a Turquia está a entrar no território da Síria sem qualquer tipo de autorização do estado sírio. Este ponto levanta a questão de saber qual vai ser exatamente a reação da Rússia e do Irão. Há ainda todas as outras ramificações desta questão.

Já se sugere que a decisão pode ter um significativo conjunto de consequências negativos como facilitar o regresso do Daesh, colocar os curdos nos braços de Assad e do Irão, como diz, causar erosão às relações da Turquia com o Congresso em Washington e mancha a honra da América ao entregar assim "amigos" - curdos - na mão de "inimigos" deles - Erdogan - e estes são só alguns dos aspetos em equação nesta altura...

São pontos importantes de análise. Olhando agora para o lado americano e tentando ser direto nos Estados Unidos também há nesta altura bastantes hesitações sobre o que fazer com a Turquia. Se olharmos para a relação dos Estados Unidos com os turcos nos últimos anos está longe de ser uma relação fluída, de proximidade, de entendimentos. Ao contrário tem sido uma relação cheia de tensões. Basta referir a compra da Turquia à Rússia, ainda há poucos meses, dos mísseis de defesa antiaérea. Não se trata de uma aquisição propriamente habitual num estado como a Turquia, estado membro da Nato.

A questão é que do lado norte-americano há provavelmente movimentações da parte de personalidades ligadas à política externa - e no fundo aos lobbys que também operam na área - há aqueles a defender que, apesar de tudo, mais vale manter aqui uma boa relação com a Turquia a pesar mais estrategicamente que os curdos, mas há aqui, obviamente, considerações ligadas - como referi - à própria mudança de posição de Ancara.

Alterações da posição da Turquia em parte motivadas pela atitude de Washington e também em parte pelas políticas do próprio presidente Erdogan. Mas também há obviamente considerações de natureza ética. Desde logo é no mínimo estranho e censurável que os Estados Unidos tendo-se apoiado no terreno largamente nos curdos para combater o Daesh nesta parte do território da Síria agora os deixe entregues à sua sorte com Erdogan.

Nesse contexto como se entende que Trump tenha reconhecido no Twitter que os curdos foram seus aliados, mas que lutam contra a Turquia há décadas, mas é chegada a hora de sair de intermináveis guerras muitas delas tribais. Classificar o conflito histórico entre turcos e curdos como guerra tribal é, no mínimo, deselegante para aliados...

Sim. É deselegante. É evidente tratar-se de uma linguagem mais própria de uma conversa em tom muito informal que no registo oficial do presidente dos Estados Unidos. Mas Trump também nos tem habituado a coisas invulgares e a uma linguagem nada usual nos registos diplomáticos tradicionais. Em qualquer dos casos Trump toca numa situação que tem o seu fundamento. Estes conflitos do Médio Oriente são extraordinariamente intrincados.

Numa linguagem mais neutral há neles elementos religiosos e elementos étnicos que são cruciais nestas disputas. No conflito curdos vs turcos a questão é fundamentalmente uma questão étnica e de reivindicação de um estado-nação por parte dos curdos. Tem, de facto, um longo percurso e até do ponto de vista histórico tem elementos curiosos como as promessas aos curdos, no final da primeira guerra mundial, da constituição de um estado autónomo e independente vão fazer agora 100 anos. Portanto até se está aqui a encerrar um ciclo de um século à volta deste problema curdo, pelo menos, no sentido da história moderna.

Mas em simultâneo a declaração de Trump também é perfeitamente errática de tal forma que logo depois começa a haver um protesto ao longo do dia e, depois vem dizer que se a Erdogan fizer algo fora dos limites ele pode obliterar a economia turca. Há aqui um registo de alguma incoerência.

Para além de pretender travar os curdos, Erdogan quererá enviar de novo para a Síria quase 4 milhões de refugiados - 3,6 milhões mais exatamente - que vivem em campos na Turquia.

O Washington Post escreve que Erdogan planeia construir 10 grandes cidades nessa faixa da Síria e estimular o crescimento da economia turca ele que tem os empreiteiros como grandes apoiantes. Ao mesmo tempo Ancara continua a chantagear a União Europeia pedindo mais dinheiro para não abrir as portas aos refugiados. Há aqui um conjunto de interesses alargados para a operação militar?

Há. Desde logo a Turquia faz há muito um jogo duplo, ou triplo, com a União Europeia, jogando com o desejo da adesão, das boas relações, mas com todos os problemas que também surgem do ângulo NATO, sabendo também que se o país sair da NATO e ficar na esfera de influência russa isso será um dado complicado para os países ocidentais. Portanto a Turquia tenta jogar e aproveitar o mais possível este cenário complexo. No caso dos refugiados e em particular tendo como pano de fundo esse potencial interesse económico a questão tem também um ângulo interessante que vai além dessa possibilidade.

Podemos compreender em parte o discurso oficial turco. A questão dos refugiados é um problema real para o país. Pela lógica geográfica e de fronteira a Turquia tem sido o país que mais refugiados tem acolhido. É um dado objetivo. Agora esta ideia de os devolver, de os fazer regressar ao território da Síria, é apenas o início de um processo que a Turquia tem em mente. Um processo que vai muito mais longe.

Agora que a guerra da Síria está, em princípio, na fase final a intenção não é apenas a de fazer regressar os refugiados até abrindo uma negociação política mais abrangente, mas sim colocar populações que não são originárias dessa parte do território da Síria. Porque há aqui no estado sírio um elemento étnico e religioso fundamental. A ideia turca é colocar essas populações no território histórico dos curdos onde são tradicionalmente maioria social, mas, se colocarem nesse território histórico mais 2 ou 3 milhões de refugiados, os curdos passam a ser minoria.

Está a Turquia a jogar a cartada demográfica como ‘game-changer’ na região?

Sim. Embora não assumida oficialmente pelo estado turco a estratégia parece-me clara. A estratégia é criar uma zona tampão no nordeste da Síria ainda por cima tendo influência nessa zona e alterar a demografia curda no sentido de, no fundo, eliminar do terreno o problema curdo.

É natural que as populações curdas estejam em oposição frontal a essa estratégia não só porque vão receber em massa populações não originárias da região, não são sequer da área, como também certamente a Turquia vai querer ter aí, de forma direta ou indireta, uma presença económica - a parte compreensível - mas política e militar. Uma presença que arrisca um problema ainda mais generalizado na zona.

De regresso a Washington, a decisão de Trump - em período de impeachment - também levanta problemas na relação da Casa Branca, até com senadores republicanos necessários ao equilíbrio interno do Partido Republicano num momento delicado?

Essas são as linhas cruzadas que neste momento se projetam contra Donald Trump. Por um lado, o presidente precisa mais que nunca da coesão do seu partido, em particular no Senado, porque se o processo de impeachment avançar é no Senado onde pode ser travado com vantagem para Trump. Há uma maioria republicana no Senado, mas aí Trump precisa de ter os senadores chave do seu lado.

Mas, insisto, a relação com a Turquia é um tema a dividir a classe dirigente política norte-americana no seu todo e a deixar divisões claras no Partido Republicano. É obviamente um quadro problemático para o presidente. Trump tenta, por um lado, navegar no que a sua intuição política lhe garante dar mais votos - poder dizer aos eleitores no seu registo simplista que, ao contrário de Obama e outros presidentes ele, sim, traz em segurança os soldados para casa sem alimentar guerras inúteis - mas, por outro lado, a decisão tem implicações na presença dos Estados Unidos no Médio Oriente e nas relações com os aliados.

Uma decisão que pode enviar o pior dos sinais de que a América não é um aliado confiável não só aos aliados como também à Rússia, à China, à Coreia do Norte?

Pode. O quadro parece - cada vez mais - ter chegado a um ponto onde, para além das declarações de Donald Trump serem muitas vezes inconsequentes ou não se perceber claramente qual é a sua linha política em função de mensagens contraditórias, começa, parece-me, a instalar-se a ideia de que no meio desta linguagem agressiva, nada diplomática, há na realidade uma espécie de cortina de fumo. Ou seja, depois nada acontece. Isto até do ponto de vista de uma ação mais musculada dos Estados Unidos.

Este quadro de perceções também é muito mau numa zona como o Médio Oriente onde todos estes conflitos estão abertos e latentes. Médio Oriente onde os aliados começam a pensar se realmente numa situação crítica os norte-americanos vão ser mesmo a ajuda de que precisam. Neste cenário a Rússia, o Irão, ou outros estados, podem ter vantagens.

Este é um problema muito sério que se está a instalar no Médio Oriente. Pela positiva também se pode dizer que Donald Trump não tem na prática um lado tão belicista quanto deixa antever a sua retórica. Esse é o lado positivo desta leitura, mas não deixa de introduzir um elemento de confusão no quadro das alianças tradicionais dos Estados Unidos e nas relações mais profundas com os seus aliados.

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