03 jan, 2020 - 17:32 • Sandra Afonso
Uma farmacêutica está a sortear o medicamento mais caro do mundo, numa estratégia de marketing que tem sido condenada eticamente.
A Novartis iniciou na quinta-feira uma lotaria internacional para atribuir 100 doses do medicamento Zolgensma, que custa cerca de dois milhões de euros, que em 2019 foi administrado em Portugal às bebés Matilde e Natália, que sofriam de atrofia muscular espinhal.
O sorteio destina-se a crianças até dois anos, de países onde o tratamento não foi aprovado para financiamento, e os resultados deverão ser conhecidos nos próximos dias.
A empresa defende que “uma lotaria na saúde é uma maneira apropriada de atender às necessidades médicas não atendidas nesta doença grave”.
Já Ana Sofia Carvalho, do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, diz à Renascença que é uma medida eticamente reprovável. “O facto de sortearam 100 para um conjunto muitíssimo maior de crianças que necessitam do fármaco é eticamente inaceitável e põe, inclusive, uma pressão nas autoridades nacionais muito grande, no sentido de comparticipar depois outras crianças. A estratégia de marketing que estão a utilizar é eticamente indescritível e inaceitável”.
A comunidade médica não está a receber a notícia de ânimo leve e reclama a atribuição do medicamento com base na necessidade, e não na sorte. Na mesma linha, segundo a Reuters, as organizações de apoio às famílias defendem critérios clínicos, uma posição partilhada pela professora da Universidade Católica, que advoga a atribuição das doses segundo uma triagem por um painel de clínicos.
“Há outras soluções, que podem não passar por um sorteio, que me parecem muito mais lógicas. No fundo, criar um painel internacional de clínicos. Primeiro, teria que percorrer, dentro daquilo que são os critérios da priorização, quem são as crianças que neste momento estão mais a precisar do tratamento. Se fossem mais de 100 crianças, e com certeza deveriam ser, teriam de fazer um guião de pressupostos éticos, para fazer as escolhas o mais ético possível, dentro de uma situação que por si já não é ética.”
Ana Sofia Carvalho defende ainda que esta indústria não pode funcionar segundo as regras de mercado, quando está em causa a vida humana. Deve haver limites para os preços exigidos. Por outro lado, as doses agora sorteadas podiam ser convertidas em descontos nos preços para todos. “Pegar naquilo que iriam poupar em não sortearem as 100 doses e decrescerem (o preço) a toda a gente que precisa, poderia ser também uma solução, que é eticamente mais aceitável.”
Ana Sofia Carvalho defende que seja posto um limite de preço para este tipo de medicamentos. “No meu entender deveria, obviamente. A indústria farmacêutica, apesar de ser uma indústria que dá lucro, não pode seguir os mesmos critérios de uma empresa que vende telemóveis ou sapatilhas, aquilo que eles estão a vender é salvar a vida das pessoas. Deverá haver um limite e a forma como se comportam, do ponto de vista ético, não pode ser igual à de outra empresa qualquer.”
“Estive a ler que este programa de investigação foi patrocinado por associações de doentes e outras entidades caritativas, com certeza tem de haver desconto no preço, tendo em conta estes fundos”, considera.
Estima-se que esta rara doença de origem genética afete um em cada 10 mil nascimentos no mundo. Os Estados Unidos aprovaram a administração do Zolgensma em maio, na Europa e Japão é aguardada uma decisão para o início deste ano.