17 mar, 2020 - 11:56 • Dina Soares
Isolar as pessoas doentes ou suspeitas de terem contraído uma doença é uma prática já referida no Antigo Testamento. No entanto, foi em Veneza, no séc. XVII, que se começou a impor que esse isolamento durasse quarenta dias. Chamaram-lhe quarentena e o termo continuou a ser usado até aos nossos dias, independentemente da duração do retiro. Aqui fica a história da quarentena e de algumas quarentenas famosas.
No séc. XVII, a cidade de Veneza era um dos principais entrepostos comerciais entre a Europa e a Ásia. Para se proteger da Peste Negra, Veneza impôs um período de isolamento de quarenta dias a todos os passageiros e tripulantes dos navios que atracavam nos portos da cidade, antes de poderem desembarcar. Uma medida de defesa contra uma pandemia que, só na Europa, terá dizimado, pelo menos, um terço da população, a somar a uma percentagem também muito significativa de vítimas na Ásia. Foi assim que nasceu o termo quarentena.
A peste negra, que se assume ter sido a pandemia mais mortal de sempre, terá chegado à Europa através do rato preto indiano e, entre os sécs. XIV e XVII, foi surgindo recorrentemente em cada geração. A imposição de um período de isolamento destinado a prevenir a sua propagação já tinha começado no séc. XIV, em Ragusa (atual cidade de Dubrovnik, na Croácia), mas apenas por 30 dias, o que não era muito eficaz, já que o período de incubação da doença, sabe-se hoje, é de 37 dias. O seu prolongamento foi decretado pelo Senado Veneziano, com grandes taxas de sucesso.
A prática de isolar as pessoas infetadas para impedir que espalhassem as suas doenças também já é referida no Antigo Testamento e seria ainda praticada em Damasco, capital da Síria, no séc. I depois de Cristo, para tentar conter a propagação da lepra. Esta foi, durante muitos séculos, e praticamente até aos nossos dias, outra doença que se prestava ao estabelecimento de situações de quarentena, bem como a febre amarela ou a cólera asiática, já no séc. XIX.
Já no séc. XX, foi a chamada gripe espanhola, ou gripe pneumónica, a justificar casos de isolamento. A doença, que foi observada pela primeira vez nos Estados Unidos, chegou à Europa em abril de 1918, no final da I Guerra Mundial, precisamente entre os militares, severamente afetados. Portugal, Espanha e a Grécia foram os primeiros países da Europa a registarem um grande número de casos. 60 mil portugueses foram vítimas desta doença.
Várias comunidades impuseram cordões sanitários para evitar contactos externos, mantendo em quarentena quem quisesse entrar no seu espaço. No entanto, a escolas, lojas e estabelecimentos de entretenimento continuaram a funcionar, bem como os locais de culto. Estas medidas não foram muito eficazes. A somar à má nutrição e às deficientes condições de higiene, a gripe espanhola matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas em todo o mundo.
A importância de coordenar as ações de quarentena entre os vários países é reconhecida há mais de 100 anos, altura em que surgiram as primeiras convenções destinadas a acertar os procedimentos destinados a impedir a propagação de determinadas doenças, em particular da cólera. Foram assinados acordos sanitários bilaterais e multilaterais, que foram evoluindo quer do ponto de vista científico quer no que se refere ao respeito pelos direitos humanos.
Para evitar casos com o de May Mallon, portadora de febre tifoide, que foi colocada em quarentena à força em 1907 e acabou por ficar em isolamento médico durante mais de 23 anos, as Nações Unidas adotaram, em 1984, um conjunto de princípios que a limitação de direitos decorrente da quarentena deve respeitar. Nomeadamente, responder a uma necessidade pública ou social premente; prosseguir o objetivo de impedir a propagação de doenças infecciosas; não ir além do necessário nem ser discriminatória e actuar sempre dentro da lei.
Estas decisões, de acordo com as Nações Unidas, devem ser sempre apoiadas em evidências científicas, garantindo avaliações regulares e mantendo o público permanentemente informado. O Estado deve, ainda de acordo com este mesmo documento, garantir as necessidades básicas das pessoas e a comunicação entre famílias; também compensar de forma justa as perdas materiais decorrentes do encerramento de negócios ou do não pagamento de salários.
Ao longo da história, têm ocorrido algumas “quarentenas famosas.” É o caso da que foi imposta nas nove ilhas de Samoa Americana em 1918.Face à escalada da doença nos países vizinhas, nomeadamente na Nova Zelândia, onde a taxa de infeção foi de 90%, o governador impôs uma quarentena completa das ilhas e de todos os navios, conseguindo assim que ninguém morresse no seu território.
Já a pequena ilha escocesa de Gruinard esteve em quarentena durante 48 anos, depois de ter sido usada pelas forças britânicas para testarem armas biológicas. Os astronautas da Apollo 11, 12 e 14 foram colocados de quarentena depois de regressarem à Terra para evitar possível contaminação interplanetária.
Para terminar, um caso de recusa de quarentena. Em 2014, Kaci Hickox, uma enfermeira dos Médicos Sem Fronteiras, lutou legalmente contra a quarentena que lhe pretendiam impor nos Estados Unidos depois de regressar da Serra Leoa, onde tinha estado a tratar doentes com ébola. O juiz acabou por lhe dar razão, justificando que a enfermeira não representava um perigo para a comunidade uma vez que não apresentava sintomas. Kaci Hickox pretendeu, com isto, provar que estas decisões devem ser tomadas com base na ciência e não no medo.