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Covid-19

De Seattle a Xangai, passando por Turim. Diferença pode estar na resposta da sociedade ao coronavírus

22 mar, 2020 - 16:49 • José Pedro Frazão

No programa "Da Capa à Contracapa", três cientistas portugueses a trabalhar na China, Itália e EUA partilham o que observaram nas suas cidades desde o início da epidemia de Covid-19. Estes especialistas pertencem à rede GPS, uma plataforma digital criada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos que mapeia os cientistas portugueses no mundo.

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Há mais de 9.000 quilómetros de distância entre Xangai, na China e Seattle, na costa oeste dos Estados Unidos. Separadas pelo Pacífico, as duas cidades acabaram por ter comportamentos preventivos semelhantes, confirmam dois cientistas portugueses ouvidos pela Renascença no programa "Da Capa à Contracapa", em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

"Em Seattle a sociedade civil fez o distanciamento social primeiro do que a imposição pelo município, que só tomou medidas de quarentena no final da primeira semana de março. Já desde o final de fevereiro que as grandes empresas, Amazon e Microsoft, colocaram todo o seu pessoal não-essencial a trabalhar de forma remota. Mesmo nos cafés via-se muito menos gente, tal como na rua", conta André Peralta-Santos, médico, epidemiologista, especialista em Saúde Publica, doutorando na Universidade de Washington, em Seattle.

O estado de Washington, na costa Oeste dos Estados Unidos, registou o primeiro caso do novo coronavírus naquele país e congrega, com Nova Iorque, o maior número de casos confirmados e mortes pela COVID-19 nos EUA.

O mesmo tipo de comportamentos foi observado em Xangai, onde Luís Pedro Coelho é professor de Biologia Computacional na Fudan University. Este cientista estava na China no início do surto e regressou há cerca de um mês à Europa.

"Os restaurantes não fecharam mas estavam vazios. A população reagiu mais [rapidamente] que a política pública. Apesar de estarem abertos, muito poucas pessoas estavam a comer nos restaurantes. A maior parte das pessoas isolou-se automaticamente. As medidas de distanciamento social foram tomadas muito cedo", relata Luis Pedro Coelho que adianta ainda que a sua Universidade estava aberta em fevereiro embora a maior parte dos utilizadores tenha evitado ao máximo todas as deslocações para as faculdades.

A disseminação de informação foi também essencial, seja na população comum ou nas elites académicas que vão acompanhando os desenvolvimentos nos países mais afetados.

"Na China sabia-se o que se estava a passar em Wuhan. Xangai fica a 1000 kms de Wuhan, é a distância de Lisboa a Bordéus. Mesmo assim há muita gente que tem família ou vizinhos de Wuhan. As pessoas tinham muita consciência e até ligação direta a essas pessoas afetadas diretamente. Discutia-se em Xangai o que se estava a passar na China", assegura Coelho num relato registado na última sexta-feira para o "Da Capa à Contracapa".

Também André Peralta-Santos sublinha a importância da comunicação num país onde há discrepâncias entre o discurso da comunidade médica e académica e o que é transmitido pela Administração Trump.

"Ter media e língua comuns ajuda muito a partilhar esta consciência do risco da epidemia. Seattle é neste momento a cidade mais afetada. A comunidade académica tem acompanhado com muita atenção aquilo que se passa na China e em Itália e vocalizam isso mesmo para a administração, fazendo um apelo para que se tomem medidas de contenção, mitigação e distanciamento social", revela este médico que se dedica à investigação do impacto de políticas públicas na saúde das populações.

Normalidade apenas a caminho da China

As autoridades de saúde chinesas têm revelado que os casos de disseminação local estão controlados e centram-se na contenção de casos importados. Questionado sobre a fiabilidade dos números apresentados por Pequim, Luis Pedro Coelho admite distorções apenas em pequena escala.

"Os números nunca serão exatos. Mas o erro não pode ser muito grande. Se em cidades como Xangai os números fossem parecidos aos de Wuhan, seria visível na população. Se os hospitais estivessem cheios, se os médicos entrassem em pânico, isso sabia-se. Se o número real é 300 ou 600, isso talvez seja difícil de julgar. Sabemos que não temos o estado de sítio a que se chegou em Wuhan", sustenta este professor português da Fudan University.

Os alunos e professores começam a preparar um regresso à normalidade naquela instituição de ensino superior. "Pediu-se autorização para reabrir completamente a universidade. As aulas são neste momento à distância e foi pedida autorização para começar as aulas em presença", complementa Luis Pedro Coelho que relata um retorno a alguma normalidade em Xangai, com mais gente na rua outra vez. "Ainda não está completamente ultrapassado mas já está do outro lado da curva", resume este cientista português que para já aguarda no Luxemburgo a evolução da situação na China.

Já André Peralta-Santos regressou na última semana a Portugal e está em quarentena porque foi informado de um contacto com um caso positivo em Seattle. Para este epidemiologista, é essencial reforçar a importância de testar o maior número de casos suspeitos, o que pode esbarrar nos problemas de um sistema de saúde que não é universal e gratuito como em Portugal.

"A percentagem de população que não tem seguro ou pode estar sub-segurada com seguro que implica pagar muito dinheiro se quiser aceder aos serviços de saúde e ser testada é um desafio. Quando lidamos com epidemias temos que ter uma visão populacional e precisamos que toda a população tenha acesso e seja tratada. Nesse aspeto acho que o Governo federal vai tomar medidas para que estes eventuais copagamentos relacionados com a Covid-19 sejam suportados pelo Governo Federal e não pelas pessoas", explica este doutorando da Universidade do estado de Washington.

Em Seattle, onde se registaram os primeiros casos norte-americanos, está a ser testada uma vacina candidata. "As vacinas têm um processo de aprovação relativamente longo porque estamos a dá-las a indivíduos que são saudáveis. Todas as preocupações com a segurança têm que ser máximas", acrescenta o médico André Peralta-Santos.

Itália: desleixo, pânico e contenção.

No programa "Da Capa à Contracapa" desta semana, participou ainda Vítor Hugo Martins, coordenador de dados na unidade de estudos clínicos do Hospital Universitário de Turim. Naquela cidade do Norte de Itália, a situação ainda não é tão grave como na Lombardia e em particular no seu sistema local de saúde, relata este cientista português que reconhece que os italianos acordaram tarde para a Covid-19.

"Na generalidade dos países europeus houve um bocadinho de descrença em relação aquilo que estava a acontecer na China. Pensavam que não chegaria cá. Por isso as primeiras semanas foram vividas um bocadinho com desleixo, até ao momento em que os casos começaram a subir. Aí sim, tomaram medidas e neste momento em Itália estamos em quarentena total. Só estão abertos os serviços essenciais, farmácias, hospitais", conta Vítor Hugo Martins a partir de Turim onde o Hospital Universitário ainda não vive o caos descrito em cidades como Bérgamo ou Brescia onde a situação é descrita como crítica.

Os italianos mudaram radicalmente o seu comportamento face ao início da pandemia, diz este investigador português que permanece em Itália. "A população passou de uma fase inicial de descrença a uma fase de pânico generalizado durante dois ou três dias em que ninguém sabia bem o que havia bem de fazer. Passamos agora a uma fase de contenção em casa em que se canta às varandas", sintetiza Vítor Hugo Martins no programa da Renascença realizado em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Este cientista acredita ser difícil estimar quando será o pico da pandemia em Itália tendo em conta que um número indeterminado de pessoas infetadas e sem sintomas. "Numa equação, quando não se tem o denominador para o cálculo, é sempre difícil determinar quando será o pico ou fazer este tipo de projeções", afirma Martins. O investigador chama a atenção para uma preocupante taxa de infeção nos operadores sanitários que indicia falta de material de proteção necessário para médicos e enfermeiros.

"Se eles que estão na primeira linha da frente não têm material , corremos o risco dos próprios hospitais começarem a ser o foco da infeção", alerta este português que trabalha no Hospital Universitário de Turim que assinala ainda o reforço de médicos com origem noutras zonas de Itália e a entrada de recém-licenciados em Medicina, estes em condições excecionais que dispensam o chamado "Exame de Estado" que por norma habilitam o licenciado em Medicina a começar a prática clínica.

Da Capa à Contracapa” é um programa da Renascença em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos. A moderação está a cargo do jornalista José Pedro Frazão. Pode ouvir ao sábado às 9h30 na Renascença ou sempre que quiser em podcast e em www.rr.pt.

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