23 jun, 2020 - 09:53 • Redação
O cineasta Sérgio Tréfaut, um dos promotores da petição “Pela Democracia e Contra o Genocídio no Brasil”, apela a que Portugal não mantenha o “silêncio cúmplice” sobre as políticas do Governo de Jair Bolsonaro e denuncie o que apelida de “genocídio” em curso.
“Aquilo que queremos é uma ação humanitária, que Portugal não seja silencioso face ao que é reconhecido como um genocídio. Foram feitas petições no Parlamento Europeu, ainda na semana passada. É um silêncio cúmplice que nós não queremos”, afirma Sérgio Tréfaut em entrevista ao programa “As Três da Manhã”, da Renascença.
A petição, dirigida ao presidente da Assembleia da República, vai ser apresentada na quarta-feira, em Lisboa. Pede ao Estado português que defenda o povo brasileiro, nas instituições internacionais, e denuncie os alegados crimes cometidos por Jair Bolsonaro.
Já recolheram muitas assinaturas?
Ultrapassámos as mil e poucas assinaturas, ainda não houve muita divulgação, mas ficamos muito contentes que houvesse assinaturas de pessoas representativas de muitos partidos. Há um receio de ao criticar Jair Bolsonaro nos estejamos a posicionar politicamente no sentido partidário, e aquilo que queremos é uma ação humanitária, que Portugal não seja silencioso face ao que é reconhecido como um genocídio. Foram feitas petições no Parlamento Europeu, ainda na semana passada. É um silêncio cúmplice que nós não queremos.
Quando fala em genocídio, refere-se concretamente a quê?
Há pelo menos quatro genocídios neste momento. O primeiro é o genocídio indígena. A política do Governo Bolsonaro é uma política de assimilação forçada dos povos indígenas, de negação da sua identidade étnica, expropriação das suas terras para exploração de gás, petróleo e mineração.
Essa promessa eleitoral tem-se concretizado no Ministério do Ambiente, onde foi colocada uma pessoa [Ricardo de Aquino Salles] que defendeu que a covid era um excelente momento para avançar com o desmatamento ilegal da Amazónia. Além dessa toda ilegalidade, a chegada da covid às tribos indígenas tem dizimado as populações de uma forma muito grande e o Presidente tem consciência disso, mas como não reconhecem a identidade dos índios e cito Bolsonaro: ‘os índios estão a evoluir e a tornar-se seres humanos como nós, não podem ficar dentro das terras como um ser pré-histórico, queremos garimpar, plantar, arrendar terra e explorar o turismo’, expropriando as suas terras.
No século XVI morreram 90% das populações indígenas – isso vem em todas as enciclopédias -, nesse momento com o coronavírus esse risco é uma realidade e teria sido evitado com cordões sanitários e a posição do Governo foi a contrária.
Alarga esse conceito de genocídio à forma mais geral como a pandemia está a ser encarada pelo Governo de Jair Bolsonaro?
Sem a menor dúvida. Portugal, com dez milhões de habitantes, fez mais testes à Covid-19 do que no Brasil com 210 milhões. Foi de tal maneira o negacionismo, a tal “gripezinha” que o Jair Bolsonaro falava, que os hospitais não estavam preparados ainda no início de abril quando os números no Brasil não chegavam a dez mil mortos e em Itália já eram 30 mil, o Brasil tinha mais enfermeiros mortos do que Itália e Espanha juntos, que eram os países mais afetados.
Houve um total descuido. O Presidente Bolsonaro dizia naquela época que nós nunca teremos metade dos mortos de Itália e irritava-se com a televisão por noticiar o que acontecia no mundo.
Esta petição pede que tipo de intervenção a Portugal, uma vez que o Brasil é um Estado soberano?
Primeiro, há uma questão de legitimidade, ou seja, se em Portugal houvessem 50 pedidos de deposição do Governo e o presidente da Assembleia da República não os pusesse a votação, é essa a situação no Brasil. Neste momento, há cerca de 50 pedidos de “impeachment” que não estão a decorrer, há bancadas compradas. O que eu estou a dizer parece estranho, mas é a realidade brasileira. Há uma ilegitimidade do Governo muito grande.
E a questão da soberania e a impossibilidade de intervenção é muito relativa. Se um vizinho nosso está a matar a mulher na sua casa, embora seja propriedade privada, eu tenho de alertar a polícia.
Mas que intervenção espera do Governo português e do Presidente da República?
Há pelo menos duas coisas muito simples. A primeira é, perante instituições internacionais, como já tem sido feito por várias organizações, denunciar o crime. Há um crime de Estado a decorrer com mortes sem fim, por causa de uma política.
A segunda coisa, por exemplo, Portugal teve uma posição ao longo dos últimos anos muito forte relativamente ao que aconteceu nos séculos XVI e XVII com os judeus, e pediu desculpa à comunidade judaica pelos autos de fé, pela perseguição. Pode e deve fazer isso relativamente aos índios do Brasil e à escravatura. E o simples facto de fazer isso, que seria muito transparente, correto e de acordo com a sua política, seria uma enorme bofetada numa política que está a sancionar os índios neste momento no Brasil.
Noutro plano, como cineasta, como vê a importância dada por Jair Bolsonaro à Cultura?
Não existe. Há tantas coisas que se acontecessem na Europa seriam um escândalo. No Brasil houve um tal desprezo pela Cultura desde a tomada de posse de Jair Bolsonaro, que nada mais funcionou. É como se não houvesse nem mais um centavo para os museus em Portugal, para as instituições que financiam o cinema, para as bibliotecas. Houve um corte total, uma destruição. Não houve um filme financiado desde que Bolsonaro subiu ao poder. E ele decretou publicamente que, se não houvesse censura na instituição que escolhe os filmes, ele não daria um centavo, e ele não deu.