16 abr, 2020 - 15:24 • José Duarte Ribeiro*
Leia também:
Escrever em tempos de quarentena a partir da Turquia poderia ir ao encontro de um simples relato de números. Um pouco por todo o mundo, onde quer que esteja a ler este postal e também para onde quer que possa enviar um, o quotidiano é feito de números; os dos dias em isolamento, os dos infetados pelo novo coronavírus e os dos ceifados pela sua doença, a Covid-19. Começa também a ser sobre os números negativos da queda da economia global. De uma forma ou de outra todos esses números nos são mais ou menos abstratos a não ser quando se nos tornam próximos, quando têm nomes ou afetam diretamente as nossas vidas.
Escrever em tempos de quarentena a partir da Turquia é então, e por mais estranho que seja, menos sobre os números da pandemia mas acima de tudo sobre os sucessivos eventos políticos que têm intensificado a deriva autocrática no país. Uma deriva que tem colocado a democracia em auto-quarentana – onde o prefixo auto se refere a autoritarismo.
Mas vamos por partes. A pandemia atingiu a Turquia muito mais tarde. Quando a 11 de março era anunciado aqui o primeiro caso de Covid-19, já a doença tinha acumulado milhares de números por toda a Europa, especialmente em Itália. O caso turco era mencionado internacionalmente entre apreciação e ceticismo. Pela imprensa turca, pela própria voz do Ministro da Saúde mas também em tons satíricos pelo Twitter, a defesa contra o vírus era em parte atribuída ao ancestral hábito turco de usar kolonya.
A kolonya turca é uma fragrância adaptada a partir da Água de Colónia, quando no século XIX se tornou bastante apreciada pelo sultão Otomano Abdülhamit II, tendo chegado a Istambul pelas rotas comerciais com a cidade de Colónia, onde foi inventada em 1709. É desde então um símbolo importante na cultura turca, oferecida a convidados como sinal de hospitalidade e como tal algo sempre presente em cada casa. Adquiriu assim, pelas suas propriedades antissépticas, um valor acrescentado e foi redescoberta como defesa quotidiana na higienização das mãos em espaços públicos.
Mas se os turcos puderam encontrar na sua estimada kolonya um simbólico aliado, ligando um imaginário reconfortante a propriedades desinfetantes, a mesma confiança não poderá ser atribuída à atuação errática do seu Governo. A Turquia regista mais de 70 mil casos e mais de 1.500 mortos. Em comparação, no mesmo período de dias, a Itália registava menos casos. Ainda assim e ao contrário da grande maioria dos países, o Governo turco continua a não optar por uma quarentena obrigatória, pelo menos não no sentido mais ortodoxo, mas já lá iremos.
Aqueles familiarizados com o regime político turco saberão que a partir de 2017 e após ter saído vencedor de um referendo constitucional, com 51% dos votos, o Presidente Erdoğan logrou a tão desejada presidência executiva que lhe permite uma liderança autocrática. E é nesse estilo de regime de um homem só que a estratégia geral contra a pandemia se tem mantido inalterável: uma espécie de síntese entre preservar a saúde económica e a saúde pública em simultâneo e apresentada por uma ambiguidade discursiva. É pedido aos cidadãos que permaneçam em casa em isolamento mas é-lhes também dito que “a engrenagem da economia e das exportações não pode parar”, citando do seu último discurso presidencial ao país. É daqui que resulta aquilo que eufemisticamente poderia chamar de inovações turcas no combate à pandemia. No passado dia 10 de abril, à dez da noite, chegou ao país uma ordem súbita de quarentena obrigatória mas com uma inovação: só para o fim de semana. Em favor da economia que não pode parar, o vírus é atacado apenas fora dos dias úteis.
Mas é também daqui que surgem ideias peregrinas no discurso político. Para contornar os repetidos apelos por parte da oposição para um estado de emergência e que assim o Governo garanta, com mecanismos de proteção do trabalho, que as pessoas possam ficar em casa, é respondido ao cidadão que “declare o seu próprio estado de emergência”. Poucos dias depois desta inovação discursiva um camionista publicava um vídeo no Twitter que se tornaria viral. Dizia ele que se o vírus não o matar, estas políticas o farão. Seria detido poucas horas depois pela polícia, levado de sua casa. O Ministro do Interior, Süleyman Soylu, um ultranacionalista e forte candidato à sucessão de Erdoğan, explicou a detenção por o vídeo se tratar de um incentivo à desordem que não pode ser tolerada.
Com o crescimento dos números, cresce também o desgaste interno de um poder que não lida bem com transparência nem aceita qualquer crítica. Isso é bem visível no facto do mesmo ministro ter mandado bloquear contas bancárias dos municípios de Istanbul e Ancara, ambas presididas pela oposição, que recebiam donativos para programas de solidariedade, como distribuição de comida. “Não pode haver um Estado dentro do Estado” diria mais tarde Erdoğan.
Termino mencionando a Cidade Virtuosa, obra fundadora da filosofia islâmica medieval, do filósofo Alfarabi, que comecei a ler. É o seu nome que está na origem das palavras portuguesas alfarrábio e alfarrabista. Para Alfarabi o regime político virtuoso é aquele no qual as almas dos seus habitantes são o mais saudáveis possível através da procura pela justiça política. Esta Turquia da democracia em auto-quarentena é precisamente o oposto.
*José Duarte Ribeiro, natural de Cabeceiras de Basto, vive na Turquia desde 2016. É sociólogo e professor na Universidade de Ancara.