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Postal de Quarentena - Kenema

“As pessoas choram quando se fala em Covid-19, ainda se lembram do ébola”

13 abr, 2020 - 08:00 • Raninha Franco de Sousa*

A Serra Leoa ainda tem poucos casos de coronavírus, mas a população está muito consternada com a pandemia. Perante a incerteza já começou a surgir o fantasma da xenofobia.

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A Serra Leoa foi um dos últimos países de África a ter casos de Covid-19. Até à data foram registados ainda só 10 casos, mas já antes da chegada da Covid-19 a dinâmica do país começou a mudar aos poucos.

Já antes da Covid-19 este país que teve uma história de muito sofrimento. Anos de guerra civil, seguidos de uma epidemia de ébola que deixou muitos traumas e feridas profundas.

Com o fim do ébola, as pessoas puderam finalmente respirar fundo e recomeçar uma nova vida em paz. O país inteiro precisava de ser reconstruído e o sistema de saúde era – e é – bastante débil (só há quatro médicos serra-leoneses no país inteiro), mas a paz era a coisa mais valiosa de que as pessoas podiam desfrutar.

Mas esta paz de coração voltou a quebrar com a chegada do primeiro caso ao país. A perspetiva de mais uma epidemia no país veio reabrir feridas e memórias que a população tinha conseguido apagar/esconder, desde o fim do ébola.

As pessoas choram quando se fala em Covid-19, mantêm as suas famílias em casa sempre que possível, e dizem ter muito medo do que está para vir.

As pessoas já não vão para os campos trabalhar na agricultura (apesar de o vírus ainda não ter chegado ao nosso distrito de Kenema) e tentam proteger-se ao máximo.

Mas, se por um lado esta nova epidemia reabre feridas do passado, por outro lado a experiência do passado, com o ébola, tornou as pessoas muito mais responsáveis no combate a este novo vírus. A população respeita as regras impostas pelo Governo, segue rigorosamente as regras de higiene e sabe manter distanciamento físico. Algo que alguns países europeus demoraram a aprender e acabaram por aprender da forma mais difícil, por experiência própria, na pele...

O Governo, por sua vez, parece ter consciência de que o sistema de saúde é fraco e por isso investiu bastante na prevenção mesmo antes da chegada do vírus ao país.

Eu, como estrangeira e de cor de pele diferente, fui sempre muito bem recebida e acolhida pela população local. Mas assim que os países vizinhos começaram a ter casos positivos, os primeiros sinais de xenofobia comecaram a sentir-se. Algumas pessoas começaram a ter medo dos estrangeiros e outras abordam-nos na rua para perguntar há quanto tempo estamos no país e de onde viemos. Ainda não é um comportamento geral da população, mas sente-se já que os sentimentos das pessoas em relação aos europeus e asiáticos vão mudando devagarinho.

O distrito onde vivo ainda não tem nenhum caso confirmado, mas sabemos que é uma questão de tempo até à chegada do vírus aqui. E por isso as pessoas rezam e tentam estar preparadas para quando a pandemia chegar. Eu faço o mesmo juntamente com os meus colegas.

Nós, estrangeiros, estamos longe das nossas famílias e impedidos de voltar a casa (os aeroportos estão fechados), por isso investimos a nossa energia em proteger a população, manter as pessoas informadas sobre o que devem e não devem fazer, e consolar quem precisa, além do trabalho médico de preparação para a chegada desta pandemia a este canto do mundo.


*Raninha Franco de Sousa é engenheira civil e trabalha para os Médicos Sem Fronteiras. Está atualmente ao serviço desta ONG na Serra Leoa, tendo passado nos últimos anos pelo Congo, Ruanda, Afeganistão e Curdistão iraquiano.

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