24 abr, 2020 - 16:15 • Geni Lloris* e Raimunda Paixão**
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Esta pandemia apanhou-nos em Iquitos, quando íamos participar na assembleia do Vicariato da região de Loreto, com um grupo de missionários das equipas itinerantes que atuam na pan-Amazónia. Quando chegámos a pandemia já avançava em Espanha, com dimensões assustadoras, e o Peru, ao dar conta isso, começava a preparar-se.
Essa é a vantagem que temos, deste lado do oceano, o facto de chegar aqui mais tarde dava-nos a oportunidade de reagir melhor, de observar o que se passava na Europa e organizarmo-nos na medida das nossas possibilidades. Em segundo lugar a boa preparação dos nossos agentes de saúde para lidar com pandemias, pois desde janeiro já estávamos a lidar com o dengue e com a malária.
Os nossos técnicos começaram a tratar dos primeiros casos de Covid-19 na pequena cidade de Indiana, mapeando a rede de relações dos primeiros infetados, mas um segundo surto, com as suas ramificações, tornou claras as nossas fragilidades: a falta de equipamentos de proteção levou a que muitos médicos e enfermeiros ficassem contaminados, fragilizando o sistema de saúde da região.
Que esperávamos de um tempo como este em que todos estamos submetidos à mesma sorte? Esperávamos que os países que estão à nossa frente passassem, sem outro interesse que não a defesa da vida, aos que estão a atravessar a pandemia agora, toda a informação, experiência adquirida e protocolos de atuação, partilhando a sua experiência, com os seus limites e conquistas, porque estamos todos no mesmo barco.
Esperávamos que de alguma maneira se pudesse coordenar a produção mundial, envio e distribuição dos materiais necessários, como máscaras e ventiladores. Em Iquitos só havia dois ventiladores e os agentes de saúde até diziam que, se o povo soubesse isso, levaria mais a sério a recomendação de não sair de casa. As máscaras, que esgotaram em semanas e agora eram difíceis de comprar nas farmácias, passaram a custar 45 soles (12,6 euros) em vez de três (83 cêntimos), uma fortuna para nós. Por isso cada um as fabrica como pode: de tecido, ou de garrafas de plástico. Sabemos que nos países asiáticos conseguiram fazer máscaras fiáveis que duram um mês.
Esperávamos que se começasse a viver o que a Amazónia e os seus povos preconizam: eu estou bem se tu estás bem, se os outros estão bem, se o nosso mundo está bem. A cultura do bem viver e bem conviver.
Algumas das medidas adotas pelos governos têm sido difíceis de implementar. “Fica em casa” é mais difícil de cumprir quando a cultura do povo é viver ao dia, ganhar em cada dia dinheiro vendendo produtos no mercado, para sobreviver. As ajudas do Governo são insuficientes e o povo diz: “Ou morro de Covid, ou morro de fome”. Expor-se ao vírus para poder dar de comer aos filhos passou a ser a luta de cada dia. Os contactos que temos nos bairros mais distantes do centro dizem que não querem ajuda económica, querem comida, uma vez que não há lojas abertas onde a comprar.
Quando não há meios de transporte, quando tudo pára, como se faz chegar alimentos a essas comunidades mais distantes? A solidariedade encontra obstáculos reais.
A grande maioria dos missionários que está aqui vive em comunidades nas fronteiras entre o Peru, Colômbia, Bolívia e Brasil, entre outras, onde a comunicação e a dependência económica e comercial são uma constante. Passam-se diariamente as fronteiras porque as famílias vivem de um lado ou de outro e porque as necessidades básicas fazem-se sentir de um lado e do outro, de ambas as margens destes rios que, mais do que marcar a fronteira, nos unem. Porque não se chega a um acordo que permita que um pequeno grupo de pessoas possa continuar a passar as fronteiras? Será que os nossos governos conseguem ver a realidade nesta margem da sociedade?
Como já dissemos, as nossas regiões não estão ameaçadas só pela Covid, mas também pela malária e o dengue. Recentemente um jovem indígena yanomani morreu de Covid porque já tinha tido malária. São povos fragilizados não só por esta pandemia, mas pelas repetidas pandemias que assolam as nossas áreas de missão, sem recursos médicos.
Como podemos ajudar? O que podemos fazer? Não nos falta vontade de sair e arriscar a vida, como fazem tantos profissionais de saúde. Mas se nos tornarmos transmissores, será essa de facto a melhor maneira de ajudar nesta fase? Respondemos aos apelos que nos chegam pelo telefone, conversas, necessidades económicas, apoio espiritual para os doentes. Pelas nossas redes continuamos a entrar em contacto, animando, orientando, sugerindo. Apesar de tudo isso parece-nos pouco, não chega.
O que já conseguimos fazer? Recebemos algum dinheiro, que usámos para fornecer serviços básicos, cartazes para a população na língua nativa, kichwa, para colocarem nas entradas das comunidades. Fizemos chegar informação sobre o que se está a passar às comunidades mais isoladas, e para isso foi necessário entrar em contacto com outras organizações, governamentais ou não, para aproveitar o envio do material. Para um problema global encontrámos soluções em rede. A pandemia evidencia mais uma vez que temos de trabalhar juntos, apesar das nossas diferenças.
A nossa maior preocupação são as comunidades mais longínquas, sem comunicação, que têm dificuldades em compreender as consequências desta pandemia e que continuam a ser ameaçadas não só pela Covid, mas também pelos grandes projetos de exploração de recursos naturais. O derramamento de petróleo em 150 comunidades no Peru e no Equador, nas províncias equatorianas de Scumbios e Napo, sobretudo de etnia kichwa e shuar, afetou cerca de 97 mil pessoas. São comunidades que enfrentam um problema grave e abastecimento de água e alimento, num contexto de pandemia que, como todos sabem, deve ser combatido com a limpeza e a higiene.
Por outro lado, os governos, longe de defender e proteger os direitos da Terra, da Amazónia e dos seus povos, favorecem os grandes projetos “de desenvolvimento” e as incursões pela selva, permitindo a entrada no território de povos em isolamento voluntário e em terras demarcadas há anos, habitadas por povos que nunca tiveram contacto com a cultura ocidental, colocando-as em risco.
Soubemos que algumas igrejas evangélicas estavam a organizar-se para entrar nos territórios dos indígenas do Vale de Javarí, para fazer contacto com os indígenas que lá vivem num estado de isolamento voluntário. Isso poderia conduzir a um genocídio. A associação que representa os indígenas recorreu à justiça e os missionários foram expulsos do território.
Diante de todas as medidas de isolamento já postas em prática é necessário ter em conta e mostrar, com maior persistência, a defesa dos territórios, ameaçados por outras pandemias para além da Covid-19. Epidemias tropicais que colocam em risco a saúde dos povos amazónicos e epidemias sistémicas que resultam das nossas decisões políticas e económicas. Ações que desrespeitam o valor dos povos indígenas, incursões nos seus territórios, que ameaçam a vida dos indígenas sem defesas para os vírus que a cultura ocidental pode transmitir (tanto em termos de saúde, política ou cultura); projetos que ameaçam os recursos naturais, fragilizando a segurança alimentar destes povos.
Como missionários, o que esperamos? Esperamos que a leitura deste “postal” possa abrir as nossas mentes e consciências para ver a vida, as epidemias, a sociedade e os problemas a partir da outra margem: a margem dos mais vulneráveis. Desejamos que esta pandemia não se limite a um esperar que tudo passe, para voltarmos aos nossos trabalhos e à vida de sempre. As nossas vidas estão ligadas, e o que acontece em qualquer parte do mundo tem repercussões noutra. Esta ligação atravessa todas as esferas da nossa existência. A vida do planeta está em risco, a vida dos povos indígenas está constantemente ameaçada pela ânsia de crescer, produzir, consumir.
Comecemos esta nova era de que tanto falamos, teologizamos e refletimos, decidindo agir nesta margem: a favor das vítimas do sistema, dos que habitam o planeta e a Amazónia desde tempos ancestrais e que nos indicam o caminho da sabedoria, da integração com a natureza, em profundo respeito por cada um de nós, do outro e do cosmos.
*Maria Eugenia Lloris Aguado, missionária Verbum Dei, membro da equipa itinerante
**Raimunda Paixao, indígena e membro da equipa itinerante.