29 jun, 2020 - 06:50 • Mical Acuña**
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Viver no Chile é viver entre dois territórios: o “Barrio” ou a “Población”*. Pergunto-me quando nasceu essa diferença, já que viver num ou noutro parecem ser realidades totalmente distintas. Escrevo-os com maiúscula, porque são lugares específicos, ao estilo “site specific” de que falam os teóricos de arte contemporânea. Diante disto, quando tento posicionar-me, encontro-me num território limite, um lugar que na realidade são dois lugares, dois territórios demarcados por uma linha imaginária, duas populações periféricas cujos centros se escapam a toda a infraestrutura turística, centros que não são centros, mas espaços de aglomeração, de multidão, de comunidade, marginalização e suplicas pelo “pão de cada dia”.
Eu sou de Santiago, capital de um país que parece uma cordilheira. O meu lugar não é o centro, mas o limite, a fronteira. Voltei a esta cidade em outubro de 2019, mal acabei o meu mestrado em artes em Sevilha, Espanha. Voltei, e a minha cidade não era a mesma, havia militares nas ruas e todo o centro turístico estava coberto de cartazes que clamavam por uma revolução: tinha começado a explosão social chilena. Os protestos foram aumentando e na minha condição de recém-chegada a minha família recebeu-me de braços abertos, nesta mesma casa onde me encontro de quarentena há três meses.
O vírus chegou num momento decisivo: a 26 de abril íamos votar num plebiscito para aprovar ou rejeitar as alterações à Constituição atual, o vírus que está a debilitar o Chile desde 1980. Com isso o isolamento tornou-se cada vez maior e a mudança política passou para segundo plano. Poderia dizer que a minha vida mudou, que a vida da população mudou, mas na verdade o que mudou foi a forma de olhar o espaço, de ver-se e saber-se num contexto, ansiando que esta pandemia torne real o “perdoai-nos as nossas ofensas”, depois de 30 anos a perdoar a quem nos tem ofendido.
Eu vivo no cruzamento de duas ruas que, segundo o mapa, pertencem à Población de San Joaquín e à Población La Victoria. Se me perguntam com qual é que me identifico mais, claramente tendo para a La Victoria. Esta Población nasceu com a primeira ocupação do Chile, um terreno ocupado por muitas famílias provenientes de um espaço denominado El cordon de la Miseria. Imagino La Victoria como uma alegoria do “site specific”, uma intervenção cuja obra é única e que deixa marcas no campo da geografia urbana: criaram o conceito de Colonos.
Tempos mais tarde nasceu a Población de San Joaquín, e a casa da minha família, de onde vos escrevo, fica na esquina onde estes dois espaços se encontram, de onde hoje partem os seus Colonos como mártires do ordenado mínimo chileno, de onde, como na maioria das Poblaciónes de Santiago, se concentram a maior quantidade de mortos e casos de contágio, de onde é preciso sair para trabalhar, para que o centro continue a ser o centro.
Onde estou? A observar num ecrã como as políticas públicas do meu país me inspiram a querer sair, atravessar a fronteira imaginária e reviver a explosão social que parecia mais esperançosa que esta nova realidade. Estou dentro de portas, perguntando-me até quando é que esta pandemia me obrigará a observar os Colonos como se estivesse noutro lugar, como se a minha vida fosse o centro e eles a periferia, esse território, que não cruzo por seguir as regras do jogo mais radical da minha existência.
“Só o Povo ajuda o Povo”, dizem os cartazes de alguns vizinhos que, ao que parece, sabem muito bem o que significa perder o medo e resistir.
*No Chile, as Poblaciónes são o equivalente às favelas, no Brasil, onde vivem os mais pobres, enquanto que os Barrios são os bairros tradicionais e planeados.
**Mical Acuña é formada em ensino e tem um mestrado em artes pela Universidade de Sevilha. Vive em Santiago, capital do Chile.