24 jun, 2020 - 06:00 • Carlos Martín Pérez*
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“Nunca vi nada assim, meu filho. Quem me poderia ter dito, com quase 92 anos, que isto iria acontecer?”
Foi isto que o meu pai me disse a primeira vez que fui visitá-lo a Zamora para tomar conta dele durante o estado de emergência em Espanha.
E a verdade é que pensei muito no que disse este sábio que sobreviveu a uma guerra civil espanhola, a um longo e duro período pós-guerra, a várias crises económicas, a quatro ataques cardíacos, à morte das suas duas esposas, dos seus seis irmãos e da maioria dos seus amigos. Este herói tem um nome, como as muitas pessoas corajosas que, infelizmente, se perderam e continuam-se a perder por causa da Covid-19, uma geração que se encarregou de construir, através de muito trabalho e esforço, um país que foi destruído após uma guerra inútil que ninguém ganhou, por muito que algumas pessoas tentassem dizer o contrário.
A saúde de Esteban nunca nos preocupou muito, apesar de ter medo de o perder por causa da sua paixão pelo tabaco (fumou três maços por dia durante mais de 60 anos), que só abandonou depois do quarto enfarte.
Sempre tivemos medo de que ele perdesse o seu espírito, o seu entusiasmo pela vida, a sua coragem para tudo, que nunca se queixasse de nada.
Ele deu-nos sempre lições de como ultrapassar, por muito ferido que estivesse.
Tudo mudou quando chegou este “dichoso bicho”, como ele lhe chama.
Após três meses sem sair de casa para dar os seus passeios diários de dez quilómetros, sem poder beber um copo de vinho com os poucos amigos que lhe restam, sem poder receber as visitas dos seus queridos familiares, o seu humor, pela primeira vez que me lembro nos meus quarenta e um anos, começou a desvanecer-se.
No início não pensei em tudo isto, apenas que talvez ele fosse assim devido à falta de atividade diária, ou à perda de um bom amigo e de dois conhecidos que morreram sozinhos no lar em que se encontravam, ou mesmo devido a alguns desmaios que ele estava a ter cada vez com mais frequência.
Então, peguei no meu carro e corri para o ver, os 250 quilómetros que separam Madrid de Zamora pareciam eternos, e quando cheguei, o meu coração partiu-se quando o vi tão triste, tão indefeso, tão velho, tão sozinho, e não resisti às lágrimas quando não pude abraçá-lo para o proteger, como ele tantas vezes tinha feito antes comigo para me encorajar, para me dizer sem dizer uma palavra, “eu estou e estarei sempre ao teu lado.”
Sem dúvida, tudo isto fez-me pensar muito durante os três meses em que estivemos fechados num pequeno e velho apartamento em Madrid, a minha maravilhosa esposa e eu.
Durante muitos momentos esquecemos o que é realmente importante, as pessoas que realmente valem a pena, temos de deixar de pensar tanto em nós próprios e pensar mais naqueles que estão ao nosso lado, quer fisicamente, quer no nosso coração.
Percebi, depois de muitos anos a tentar ajudar muitas pessoas como assistente social – durante a minha experiência de luta para tirar mulheres e crianças de situações difíceis vivendo histórias horríveis que pensamos que só existem no cinema – que já tinha normalizado tudo o que vejo à minha volta todos os dias. Uma grande cidade de mais de quatro milhões de pessoas que passamos todos os dias na rua, no metro, num bar, e de quem fazemos apenas um número, que não olhamos uns para os outros, que apenas procuramos o nosso umbigo, sem nos preocuparmos com o que acontece aos outros e, claro, esquecemo-nos tão rapidamente que estamos no mundo graças aos nossos anciãos, graças ao seu trabalho, aos seus sonhos, ao seu esforço, à sua paciência inesgotável com todos nós quando éramos crianças, e que hoje não temos com eles.
Por todas estas razões, neste postal de Madrid para contar como vivi este longo confinamento, não optei por contar a minha história, porque a minha história sem o meu pai não existiria.
*Carlos Martín Pérez tem 41 e é assistente social. Natural de Zamora, vive agora em Madrid com a sua mulher Rita, que é portuguesa.