30 jul, 2020 - 06:51 • Ana Baptista Viana*
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Depois de inúmeras reuniões, debates Parlamentares entre os membros do Governo, comunidade científica e o Presidente da República Félix Tshilombo Tshisekedi decide-se fazer o confinamento em Gombe, zona principal de Kinshasa, o epicentro da pandemia e onde se aglomeram todas as residências oficiais dos embaixadores, corpo diplomático e respetivas embaixadas, a administração de todo o Estado e o centro nevrálgico de toda esta capital com mais de 12 milhões de habitantes.
Declara-se o estado de emergência, as escolas consulares, privadas e do Estado são fechadas e as crianças seguem as aulas on-line. O pânico da minha filha que estava no último ano do liceu Prince de Liége, a escola belga, e que se viu enclausurada num apartamento com quatro cães e o empregado que tentava safar se ao trabalho com medo do “animal”, como ele chama à Covid-19.
Bem ou mal, a Maria conseguiu o diploma e já seguiu caminho rumo a Coimbra, onde vai estudar Línguas na mesma faculdade em que tirei o meu curso.
O povo em Kinshasa diz que esta doença é provocada por um vírus que só atinge os ricos, os políticos e os que viajam muito e sarcasticamente lá comentam que não há vírus que consiga derrotar o ébola. Valham-me os santinhos do altar da Catedral de Nossa Senhora de Fátima, aqui de Kinshasa, se este povo não existisse teria de ser inventado, mas quando se vêem os números até ficamos na dúvida se o povo terá ou não razão e eu adoro este povo pela sua resignação, força e otimismo. Os congoleses são um dos povos mais acolhedores no mundo.
A primeira vítima do sexo feminino da Covid-19 era uma grande amiga minha, com a qual tinha estado três semanas antes, e a minha primeira reação, além da tristeza, foi o pânico de pensar que também poderia estar contaminada. Nesse dia o carrinho das compras no hipermercado estava repleto de álcool, gel antibacteriano (mesmo que nada faça), muita lixívia, produtos de limpeza, e não podia faltar uma tonelada de papel higiénico que, nestas circunstâncias, daria para tudo. A despensa e os congeladores ficaram a abarrotar e ainda hoje lá existem uns restos dessa reserva de guerra anti-Covid, ou “animal”, como diz o papa Jean Pierre, o meu empregado.
Gombe ficou vazia durante duas semanas, o Hotel de Ville (Câmara Municipal) decidiu dar uns "laisser passer" enumerados a alguns privilegiados para assegurarem um serviço mínimo na administração, nos centros hospitalares e em superfícies de distribuição de produtos alimentares.
A polícia e os militares asseguravam a entrada e saída de Gombe, o epicentro da pandemia, e nas barreiras os agentes do INRB (Institut National Recherches Biologiques), obrigavam os poucos que tinham esse livre trânsito a lavar as mãos, medindo-lhes a febre, mas não houve muitos casos a serem despistados nessas barreiras.
Eu sou manager numa rede de supermercados na RDC e através da minha amizade com o Ministro Provincial do Interior, que é descendente de um português, consegui arranjar sete "laisser passer" com os quais assegurámos durante essas duas complicadas semanas a distribuição de alguns bens alimentares aos clientes mais desesperados que facilmente entravam em pânico, como os jovens quadros de ONG'S.
Com esses sete "macarons" os motoristas conseguiam trazer mais de 15 agentes que asseguravam as encomendas sujeitas a uma lista de espera de dois dias.
Quando saíamos de Gombe o cenário era completamente diferente, porque o povinho que nem 1000fc tem para comprar um pão, onde irá arranjar mais outros 1000fc para comprar um "cache nez", como eles chamam a máscara, e que significa "tapa nariz"?.
Findas as duas semanas prolonga-se o confinamento mas os supermercados e mais ministérios abrem e os habitantes de Gombe podem circular livremente. Contudo, as entradas na zona estão interditas e ninguém entra ou sai se não tiver o seu "laisser passer".
As escolas continuam fechadas e os alunos já se regozijam de o ano estar salvo.
Finalmente desconfinaram no dia 9 de julho e o estado de emergência foi interrompido no dia 21. Continuamos a respeitar a distância de dois metros e o uso obrigatório do "cache nez".
No Congo temos, no total, 204 vítimas da famosa Covid-19, ou do “animal” e provavelmente o povinho tem razão ao afirmar que este vírus teve medo de travar uma guerra contra o Ébola e que, como um cobarde, abandonou a armas.
*Ana Baptista Viana é portuguesa, mas vive e trabalha em Kinshasa, onde gere uma rede de supermercados.