19 abr, 2020 - 16:35 • Saw Nang*
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As notícias de um novo coronavírus em Wuhan começaram a surgir em dezembro de 2019. Fiquei logo preocupada porque o meu país, Myanmar (Birmânia), faz fronteira com a China. Contudo, as autoridades de saúde do Myanmar começaram por dizer à população que não tinha de se preocupar, porque Wuhan fica longe do nosso território e porque a temperatura no Myanmar é tão quente que o vírus não conseguiria sobreviver.
O ministro da Saúde chegou mesmo a dizer às pessoas que ficariam doentes** e em estado de choque se conhecessem as medidas de prevenção de contágios que o Governo preparou (isto rapidamente se transformou num "meme" popular.)
Em fevereiro, quando começaram a surgir os primeiros surtos em países ocidentais ainda mais distantes de Wuhan, fiquei preocupada. Antes de me tornar jornalista, estudei medicina; ao saber dessas notícias, fiquei com medo e decidi ficar em confinamento.
No Myanmar, a pobreza é um grande problema e o desenvolvimento económico é lento por causa das sucessivas guerras civis no país.
Pode dizer-se que Myanmar não tem um verdadeiro Sistema Nacional de Saúde. Quando as pessoas ficam doentes, é prática comum recorrerem a remédios caseiros. E nestes tempos de desastre, as pessoas começaram a acreditar em todos os rumores sobre novas mezinhas. Por exemplo, pôr sete sementes de pimenta debaixo da língua ou comer uma mistura de citrinos e pimenta. Para além disso, as pessoas estão ligadas através do Facebook, numa altura em que a internet rebenta de falsos remédios, como ferver folhas de Neem e beber a infusão para prevenir infeções pelo novo coronavírus, que depois se espalham através do Facebook.
O Myanmar confirmou o primeiro caso de infeção no dia 23 de março. Nesse dia, os mercados de vegetais do país estavam cheios de gente e foram encerrados porque a comida começou imediatamente a escassear.
Desde então, as pessoas que podem trabalhar a partir de casa estão em casa. Quem não tem o vírus (ou não foi testado e não apresenta sintomas) culpa os que sabem que estão infetados. Sim, culpar as vítimas é um problema sério no Myanmar. Se apanhares Covid-19 aqui e não morreres da doença, morres da culpa.
Até este domingo, 19 de abril, o Myanmar registava um total de 108 casos positivos, cinco mortos e sete recuperados de um total de 4.340 pessoas testadas (entre mais de 53 milhões de habitantes). Não há testes suficientes no país, pelo que o número total de pessoas testadas é muito baixo. À medida que a situação foi piorando em menos de um mês desde o primeiro contágio confirmado, o Governo foi encerrando o setor dos transportes e outros, os hóteis e outros serviços foram fechando portas também.
Quem seguir as regras do Governo fica a salvo. Mas há pessoas que não estão seguras, mesmo que sigam essas mesmas regras à risca. Falo das pessoas do estado de Rakhine, no oeste do Myanmar, onde o Estado é acusado de cometer genocídio contra os Rohingya pelo Tribunal Penal Internacional.
Em Rakhine há batalhas entre o Exército estatal e grupos armados étnicos quase todos os dias. A guerra civil no Myanmar é, neste momento, a mais longa do mundo. Nalgumas zonas do estado de Rakhine, o acesso à internet está cortado há cerca de dez meses, então as pessoas nem sequer sabem deste novo coronavírus. Tudo o que sabem é fugir todos os dias das balas sem saberem de onde elas vêm.
O Governo garante que também tem um plano de proteção contra a Covid-19 no estado de Rakhine, mas muito poucas pessoas acreditam nisso. Até agora, as Tatmadaw [nome oficial das Forças Armadas do Myanmar] continuam em combates sem anunciar um cessar-fogo. As notícias que nos chegam diariamente de Rakhine são de civis mortos nessa guerra quase todos os dias.
Apesar de tudo, as pessoas que vivem noutros estados do país têm muita sorte em comparação com as de Rakhine.
Quando rezo é isto que peço: que os cientistas encontrem uma cura para este coronavírus que conquistou o mundo inteiro tão rapidamente e que a guerra civil no Myanmar seja travada para podermos ter paz.
* Saw Nang nasceu e vive em Mandalay, a segunda maior cidade do Myanmar. É jornalista freelancer e correspondente do "New York Times" no país
** em birmanês, a expressão "ficar doente" também define ficar em estado de choque