04 jun, 2020 - 07:00 • Karol Zetsche Silva*
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Esperei que adormecessem. Depois esperei maias uma hora, só para ter a certeza. Depois abri a porta e uma corrente de ar penetrou a casa, como se não tivesse mais para onde ir.
Cheirava a fumo de cigarro, ouvi vozes, entrecortados com a música daqueles que não acreditam no perigo. Aqueles que, mesmo nesta altura, fazem festas onde não cabe a decência.
O desejo repentino de ir ter com eles passou-me pela cabeça, mas sabia que um dia destes deixaria de os ouvir. Pessoas na rua, pensando estar a salvo uns dos outros, saindo como cobras na noite, sem saber que todos os caçadores saem quando escurece.
Sem parar para pensar mais volto para dentro de casa; tranco a porta e subo ao segundo andar. Abro a janela para a varanda e observo.
Aqui não precisamos dos noticiários para nos dizer que vem aí o crime, quem vive por cá sabe disso sem precisar de ser avisado. Na distância, sem que a música o ouça, soam disparos. Ouvem-se gritos de criança, gritos de alguém que será ignorado pela justiça. Um, dois, três tiros. Silêncio. Quatro, cinco tiros. Silêncio. Ainda que eu os chame, a polícia não vem para onde eu vivo, e ainda que viesse seria para se tornar parte daqueles que nos “desaparecem” sem remorsos.
Alguém pára a música no sistema de som. Há silêncio entre eles, voltam-se de um lado para o outro, depois ligam a música outra vez.
É complicado viver aqui, sabendo que o boletim meteorológico trará sempre alguma coisa com que nos preocupar. Mas depois de tanto tempo estes problemas tornaram-se o leite que acompanha o pão nosso de cada dia.
Uma pandemia, corrupção, assassinatos, desaparecimentos, violência, agressões, assaltos. Temos uma fórmula para tudo, um feitiço, uma mantra. E sempre que acontece alguma cisa, quer queiramos, quer não, continuamos por aqui.
Acordarei intacta amanhã, se Deus quiser.
*Karol Zetsche Silva é mexicana, tem 19 anos, e está agora de regresso a Monterrey, depois de terminar o 12.º ano no colégio internacional dos United World Colleges, na China.