02 jul, 2020 - 07:10 • Francisco Fonseca*
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A maré cheia e a maré vazia vão-se alternando. A água do mar sobe durante aproximadamente seis horas e depois desce durante o mesmo período de tempo; mas entre o Brexit e a Covid-19, desde 2016 que uma maré de incerteza inunda o Reino Unido.
Os efeitos negativos de anos de dúvidas tornavam-se, no final de 2019, cada vez mais difíceis de ignorar. Socialmente o país continua dividido entre os que se sentiam Europeus e os que queriam deixar a Europa para trás. Depois de anos de prosperidade a economia do Reino Unido abrandava a olhos visto, e muitas indústrias eram obrigadas a despedir pessoas.
Com a maioria do governo de Boris Johnson, e a saída oficial da Europa finalmente declarada, a vontade de andar para a frente era palpável. Na rua a frase, “Só quero que isto acabe,” flutuava de boca em boca, fossem de esquerda ou de direita, e eu, a trabalhar no país há quase cinco anos, aceitava que as coisas iam mudar.
A 5 de Março de 2020, o Reino Unido declarou a sua primeira morte oficial devida ao novo coronavírus — já a Itália registava quase 4,000 casos e 150 mortos. Mesmo vendo a inevitabilidade do colapso do sistema de saúde Italiano e Espanhol, e todas as medidas impostas nos outros países Europeus, o Governo britânico continuava vestido para a festa da “Independência” enquanto via os seus vizinhos a procurarem não se afogar na primeira onda da pandemia. Pelo Reino Unido fora ouviam-se protestos e pedidos de uma estratégia; tentativas de descredibilizar o perigo; sugeriram-se diferentes planos de ação; tentavam-se formas de evitar um confinamento ao estilo europeu, evocando-se sempre o nome da ciência como forma de justificar medidas, ou a falta delas. E por fim… fez-se silêncio.
Fechados em casa, o povo britânico reuniu a força e a compaixão que durante a Segunda Guerra os viu sobreviver a cinco anos de consecutivos bombardeamentos alemães. O Governo requisitou 250.000 voluntários para ajudar os mais vulneráveis durante o confinamento e poucas horas depois já estavam mais de 1 milhão de pessoas inscritas no programa. Grupos de ajuda comunitária tinham uma taxa de crescimento mais rápida do que a taxa de infeção do próprio vírus, e as ruas que normalmente estariam inundadas de cerveja, festas e desordem pública, eram todas as quintas-feiras preenchidas com o som de palmas de apoio ao NHS (o sistema nacional de saúde). Um país dividido por um referendo era agora uma força unida contra um inimigo comum.
Hoje, após 14 semanas de confinamento, e apesar de o número de novas infeções e mortes a diminuírem continuadamente, o Reino Unido é o terceiro país do mundo com mais mortes por Covid-19. Mas, mesmo depois de várias liberdades devolvidas, e sem nunca ter sido alvo de restrições tão severas com Espanha e França— países em que o exercício no exterior chegou mesmo a ser proibido— o confinamento por aqui parece não ter um fim anunciado. E a verdade é que mesmo sem um fim oficial, nas ruas percebe-se que as pessoas já estão fartas de ter medo. Há quem use máscara, mas a maioria anda de cara destapada. Há relatos de festas ilegais por todas as partes do país e quando o tempo voltar a aquecer é provável que, como aconteceu no fim-de-semana passado, mais de 500,000 pessoas voltem a viajar do centro do país até à costa sul para darem um mergulho no mar.
Os números dos mortos já não têm o mesmo impacto, mesmo existindo medo de uma segunda vaga. A falta de contacto social pesa mais do que a perceção do risco de morte. Cansados de ter medo da maré, e com mensagens pouco claras por parte do Governo de Boris Johnson, os ingleses parecem prontos para voltar à vida—mesmo com uma Escócia e um País de Gales mais cuidadosos— porque com a crescente incerteza sobre o futuro económico do país enquanto há três meses parar significava viver, pelo menos por agora, parar parece significar morrer.
*Francisco Fonseca tem 36 anos e vive em Exeter, no Reino Unido, onde trabalha em marketing numa empresa de venda de aquecimentos, passando o seu tempo livre a surfar nos mares frios que banham o país.