08 out, 2020 - 22:21 • Filipe d'Avillez
O Presidente norte-americano, Donald Trump, tem estado a promover um tratamento da farmacêutica Regeneron para combater a Covid-19, que nas suas palavras o "curou" dos sintomas da doença, e que tem por base três fármacos -- um deles desenvolvido com base em células recolhidas de tecido fetal, uma prática que a administração Trump contesta e à qual retirou financiamento federal no ano passado.
“A promoção da dignidade da vida humana desde a conceção até à morte natural é uma das maiores prioridades da administração do Presidente Trump”, afirmou o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, em junho de 2019, quando anunciou a suspensão do uso de tecidos de fetos em qualquer estabelecimento federal de saúde.
Apesar de Trump falar em "cura", o medicamento está ainda em fase de testes, não tendo sido autorizado pela FDA para uso geral. Depois de o ter tomado, o chefe de Estado prometeu que o fará chegar a qualquer norte-americano que o queira, de forma gratuita, descrevendo-o como “milagroso”. A empresa que o fabrica já pediu uma licença especial para o colocar no mercado.
Face à notícia, os críticos do Presidente acusam-no de hipocrisia, por promover e recorrer a um tratamento com a mesma base científica que condenou publicamente antes da pandemia.
Confrontada com as notícias, a Regeneron já veio dizer que a linha de células 293T, que envolve células recolhidas de um feto abortado, apenas foi usada para testar a capacidade do remédio para neutralizar o novo coronavírus. "As células não foram utilizadas de qualquer maneira e não se usou tecido fetal na investigação", garantiu a porta-voz da farmacêutica, Alexandra Bowie.
Do ponto de vista ético, a questão do uso deste tipo de células é complexa.
A avaliação ética de uma situação desta natureza tem em conta a distância temporal e causal entre o utilizador do medicamento e o fator que põe em causa a eticidade do mesmo. Traçando um paralelo, tirar benefício de trabalho escravo é eticamente inadmissível, mas não é considerado eticamente reprovável entrar hoje num edifício que foi construído recorrendo a trabalho escravo há vários séculos.
A mesma lógica é aplicada no caso específico de medicamentos ou vacinas produzidos com recurso a células fetais.
A questão não é nova. A vacina contra a rubéola, por exemplo, também foi desenvolvida recorrendo a linhas de células que têm na sua origem tecidos de fetos abortados, nomeadamente nos anos 1960 e início da década de 70.
O tema chegou à atenção da Academia Pontifícia para a Vida, um órgão da Santa Sé, que publicou um documento sobre o assunto em 2005.
O documento começa por esclarecer que o uso de células retiradas de fetos abortados é sempre moralmente ilícito, mas que existem graus de colaboração com esse mal. A colaboração direta com o próprio aborto, ou com o desenvolvimento inicial da investigação, é moralmente repreensível, mas a responsabilidade moral dilui-se à medida que as pessoas em causa, e a motivação do uso dessa tecnologia, se afastam desse mal inicial.
O documento continua dizendo que os cidadãos podem legitimamente abster-se de utilizar este tipo de vacinas, mas que em casos em que não existe alternativa moralmente aceitável e que o risco para a população em geral de recusar a inoculação é grande, a utilização da vacina é moralmente aceitável.
“Encontramos, nestes casos, uma razão proporcional para aceitar o uso destas vacinas quando confrontados com o perigo de favorecer a propagação do agente patológico”, lê-se.
Este documento serviu de base para outro publicado em 2017 pela mesma academia, repetindo a argumentação e as conclusões e ambos foram citados pela Conferência Episcopal de Inglaterra e do País de Gales em documentos publicados em julho e em setembro, nos quais se conclui que “vacinas clinicamente recomendadas podem ser usadas de consciência tranquila” e que o seu uso “não representa uma cooperação com o aborto voluntário”.
Em todos os casos, contudo, a Igreja insiste que não devem de forma alguma ser adotadas novas linhas de células desta origem e que, onde for possível, devem ser desenvolvidas vacinas e tecnologia alternativas e moralmente aceitáveis.
À luz desta argumentação, depreende-se que é moralmente aceitável que qualquer cidadão, incluindo o Presidente dos EUA, recorram ao medicamento da Regeneron, embora continuem a ter a obrigação moral de tentar impedir que a investigação com recurso a células de fetos abortados não prossiga.
O Presidente norte-americano está a receber um tra(...)