07 jan, 2021 - 06:29 • João Branco*
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Em agosto de 2019, um dos mais importantes grupos de teatro de Cabo Verde, sediado na ilha de São Vicente – o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo – viajava até à China para participar num festival internacional de artes, onde iria estrear uma nova produção, intitulada “SonhaDor” (um jogo de palavras entre Sonho e Dor, que juntas dá origem a uma terceira palavra). Uma obra que contou no elenco com cinco mulheres, três atrizes, uma cantora e uma bailarina, e que tinha como tema o universo feminino crioulo, dividido em cinco quadros: isolamento, distância, amor, força e festa. Eramos sete a viajar e chegámos muito animados porque era a primeira vez que tínhamos esta oportunidade de conhecer o outro lado do mundo.
O que isto tem a ver com a forma como o cabo-verdiano lidou, ou tem lidado, com a atual pandemia? Tudo. Porque longe de imaginar o que nos esperava alguns meses depois, chegámos a um país onde muita gente já andava de máscara na rua, (aliás, para nós esse era ainda um objeto estranho, apenas visto nos noticiários das televisões). O contacto físico também era evitado e isso causou-nos alguma estranheza. O cabo-verdiano é efusivo, barulhento – no bom sentido do termo –, afetuoso e festivo. Quando o nosso grupo chegava aos locais onde decorriam as atividades do festival, já se sabia que Cabo Verde estava “presente”. Um pouco contra a corrente, abraçávamos toda a gente e sentíamos que aquela retração toda era algo relacionado sobretudo com a cultura do lugar. Mas não era apenas isso. Como depois viemos a aprender a duras penas, os orientais já tinham lidado com pandemias há bem pouco tempo. Algumas bem perigosas e mortais. Já em pleno século XXI aquelas regiões do planeta tiveram que lidar com esse tipo de doença, rapidamente adotando as medidas necessárias que a nós (ainda) nos eram naturalmente estranhas.
Até que um dia uma pandemia se tornou global, não olhando a quem nem a onde, chegando a todos os cantos e recantos, com Cabo Verde incluído, naturalmente. E aqui é a grande questão, o núcleo central desta narrativa: como é que um povo festivo, afetuoso, que gosta de tocar, dançar, esfregar, abraçar e beijar lida com uma pandemia em que a principal medida de prevenção é o distanciamento social? Lidar com adversidades é o pão nosso de cada dia, neste pequeno arquipélago plantado no meio do Oceano Atlântico, meio caminho andado entre a Europa e a América do Sul. A escravatura, primeiro, as tremendas fomes, depois, dizimaram muitos milhares. As secas, as dificuldades, a falta de riqueza mineral ou algo que permitisse o surgimento de uma indústria, fez de Cabo Verde um país que se teve que virar para outras fontes de rendimento, por um lado, e por outro, transformou este povo num povo resiliente, solidário, fortalecido, capaz de resistir a todas as intempéries.
Como conviver com essas tragédias no fio condutor da História? Com alegria, com espírito solidário, com arte e, sobretudo, com música. Esta está presente no nascimento (com o hábito de amigos e familiares irem cantar a casa do recém nascido, sete dias após o nascimento, para afastar bruxas e maus olhados), nos aniversários, nos casamentos, nas festividades religiosas (e ao mesmo tempo pagãs) e até na morte, com o hábito de um conjunto de músicos acompanhar o funeral até ao cemitério, tocando mornas ou outras músicas específicas para a ocasião. Por outro lado, as outras fontes de rendimento que Cabo Verde foi encontrando, começou com o mercado escravocrata, que transformou a Ribeira Grande de Santiago num dos maiores interpostos de escravos do mundo na época; passou pela exploração do Porto Grande do Mindelo, na segunda metade do século XIX; pela exploração do aeroporto internacional da ilha do Sal tirando partido do posicionamento geoestratégico do país; e hoje, a nossa principal fonte de rendimento era, sem dúvida nenhuma, o turismo. E foi aqui que começámos a sofrer as primeiras grandes mazelas, com o fecho das fronteiras e o cancelamento dos voos, medidas que foram tomadas, diga-se em abono da verdade, a tempo e horas pelo Governo de Cabo Verde, quando a situação em Itália começou a piorar substancialmente.
Sem essas fontes de receita ou emprego, num país onde os grandes momentos do ano são festividades, obrigar todo o povo a uma quarentena não foi tarefa fácil. Mas o cabo-verdiano tem, como expliquei atrás, uma notável capacidade de adaptação à adversidade e de uma forma geral, foi seguindo as orientações do Governo, respeitando as medidas básicas impostas pelo Estado de Emergência.
Na verdade, o que mais se comentava é que felizmente a pandemia só se espalhou de forma global depois do Carnaval, pelo que ainda pudemos viver em 2020 a maior festa popular do país, que envolve dezenas de milhares de pessoas nas ilhas de São Vicente – com o já célebre Carnaval do Mindelo – e de São Nicolau (embora se festeje o Carnaval em todas as ilhas). Mas já não foi possível realizar as atividades da Festa da Bandeira da ilha do Fogo, uma das mais imponentes do ano, que decorre no início de maio. Nem as festas de romaria do mês de junho, nem os festivais de música de verão, com destaque para o Festival de Música da Baía das Gatas. A terminar com esta triste passagem de ano, em que foram proibidas as festas, fossem elas públicas ou privadas. Difícil para o cabo-verdiano passar um ano sem festejar como tanto gosta!
Até hoje cerca de 12.000 pessoas foram infetadas em Cabo Verde pelo Covid-19, segundo os números oficiais. 113 pessoas faleceram em resultado da mesma, a maioria pessoas idosas. Atualmente o país conta com pouco mais de 200 casos ativos e as ilhas mais turísticas, como o Sal ou a Boavista já não tem casos há várias semanas. Tendencialmente, começam as fronteiras a abrir e turistas a chegar, com testes negativos numa mão e uma vontade de fugir do frio na outra. E como bem disse o atual presidente da Câmara do Sal, “hoje, um turista que venha de qualquer país europeu está mais seguro na ilha do Sal do que na sua cidade.” E é verdade. Cabo Verde, um pequeno país de pouco mais de 500 mil habitantes, mesmo vendo-se privado da sua principal fonte de rendimento, o turismo, tem sabido responder às exigências da situação e ainda que haja sempre quem queira furar as orientações ou seja influenciado por alguma dessas teorias da conspiração que fervilham nas redes sociais, pode-se dizer que, de uma forma geral, estamos a reagir muito bem enquanto país, cada um fazendo o que tem que fazer, com destaque para os profissionais de saúde, os guerreiros da linha da frente desta duríssima batalha.
Cabo Verde aguarda, pois, ansioso que venha a vacina – que será, como já foi anunciado pelo Governo, universal e gratuita – para que possamos festejar de novo! Que se abram as fronteiras, que os empreendimentos turísticos que foram interrompidos possam ver a luz do dia, que o desenvolvimento continue a sorrir no país da morna e da morabeza (uma palavra crioula que simboliza a arte de receber bem).
Esta provação também trouxe à tona muitas das fragilidades do tecido social que estavam disfarçadas por uma (ainda) frágil melhoria económica. A pobreza tornou-se mais visível. Que aprendamos a ser menos egoístas, mais críticos e construtivos.
Aos poucos a vida vai retomando a normalidade, há poucas semanas vivemos um processo eleitoral (para os municípios) que decorreu na maior normalidade e neste 2021 já só se respira futuro. Para que nos possamos abraçar e dançar de novo, sem medo e com a alegria que é apanágio do povo das ilhas.
*João Branco nasceu em Paris em 1968. Formado em Portugal na área da cultura, vive no Mindelo, na ilha de São Vicente, Cabo Verde, desde 1991, onde trabalha na área do teatro e da promoção cultural em geral. Por este seu trabalho foi condecorado em 2019 com a Comenda de Mérito por Marcelo Rebelo de Sousa.