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Um ano depois do vírus

"A China não se tinha dado conta que o mundo poderia vê-la de forma negativa"

09 fev, 2021 - 18:24 • José Pedro Frazão

Ouvidos no "Da Capa à Contracapa", o antigo embaixador brasileiro em Pequim, Marcos Caramuru de Paiva, e o ex-correspondente da Lusa na China, António Caeiro, concordam que a liderança política chinesa saiu a ganhar da pandemia. A China conseguiu algum crescimento económico, manteve vigilância sobre os cidadãos e aposta agora na "diplomacia da vacina" para manter influência pelo mundo.

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Não foi a percentagem de crescimento económico habitual para os padrões chineses, mas, no meio da recessão internacional, a China conseguiu fechar 2020 com um aumento de mais de 2% da riqueza produzida no país.

Oficialmente, as estatísticas mostram que a China controlou a pandemia de forma satisfatória e o regime de Pequim soube capitalizar os louros, admitem os convidados do "Da Capa à Contracapa" que analisou a forma como a China lidou com a crise do novo coronavírus.

"Do ponto de vista sanitário, foi uma vitória e é celebrada como tal pela atual liderança do país", afirma António Caeiro, que viveu e trabalhou na China entre 1991 e 2015 como correspondente da Agência Lusa.

O jornalista ressalva que nem tudo foram rosas para o regime, sobretudo tendo em conta a situação "bastante tensa" que se viva há um ano, recordando demissões de responsáveis do Partido Comunista na província de Hubei, cuja capital é Wuhan, a juntar ao afastamento de quadros por todo o país.

"A pandemia foi controlada, não está totalmente erradicada, mas está praticamente eliminada. A liderança do Presidente Xi Jinping reforçou-se e no plano internacional, num certo sentido, a China pode até não exportar o seu modelo, mas apresenta o seu sistema de governação como mais efetivo no controlo da pandemia do que os governos democráticos nos seus respetivos países", acrescenta António Caeiro.

Para Marcos Caramuru de Paiva, que liderou a embaixada do Brasil em Pequim entre 2016 e 2018, tanto o Presidente Xi Jinping como o Partido Comunista Chinês saem fortalecidos da pandemia.

" A população dá-se conta de que a China muito rapidamente conseguiu conter a pandemia. Em segundo lugar, os chineses estão a olhar para a confusão que existe no Ocidente sobre como lidar com o assunto, com uma falta completa de direção num grande número de países. Inclusive, as próprias populações olham com perplexidade para a nossa realidade", sustenta o antigo diplomata e atual consultor de projetos de investimento entre a China e o Brasil.

"Na China, as pessoas temem o Governo e o Governo teme as pessoas"

A frase de Caramuru serve para descrever o delicado equilíbrio chinês na relação entre poder, autoridade, liberdades e economia.

O antigo embaixador acredita que o fortalecimento do Presidente não vai mudar a realidade interna, no sentido de controlos mais rígidos ou, ao contrário, mais flexíveis.

"Não acredito que existe uma demanda da população por democracia. Acho que essa demanda não existe, mas penso acho que existe um certo incómodo da população quando vê que as suas comunicações pelo WeChat - o WhatsApp chinês - estão a ser vigiadas. Acho que é desnecessária tanta vigilância porque, bem ou mal, o que a população chinesa busca é bem-estar", argumenta este gestor que viveu em Pequim e em Xangai.

António Caeiro observou a realidade chinesa de perto nos últimos 25 anos e admite que o desejo de democracia não aumentou com a subida do nível de vida de uma parte da sociedade chinesa.

"Há questões que parecem desafiar a Ciência Política como a de que a emergência de uma classe média cada vez mais próspera e mais rica acabaria por se traduzir num crescente desejo de participação política e de maior pluralismo. Isso aparentemente não está a acontecer na China ou não é equacionado pelo Partido Comunista", sustenta o antigo correspondente da agência Lusa em Pequim.

Direitos Humanos e Negócios Estrangeiros

A repressão sobre os Uigures, a tensão em Hong Kong ou a ameaça independentista de Taiwan são processos em que a China está em tensão com os países ocidentais.

Marcos Caramuru não tem dúvidas que muitos países que se relacionaram com a China deram prioridade à agenda económica e comercial, colocando as questões de direitos humanos em segundo plano.

No entanto, o ex-diplomata considera que o tema deve voltar à agenda das relações entre Pequim, Washington e as capitais europeias.

"Vai ganhar agora primeiro plano em primeiro lugar porque a administração Biden dará ênfase a essa questão. É inevitável que esses temas voltem a aparecer. O próprio relacionamento económico da China com a Europa está a ganhar novas dimensões. A China já não depende bastantes dos investimentos industriais europeus no seu território", exemplifica Caramuru dando o exemplo da relação estreita entre Berlim e Pequim.

O papel alemão na industrialização chinesa é também sublinhado por António Caeiro que lembra como os altos quadros do Partido Comunista privilegiavam a utilização de carros alemães de vidros escuros fumados.

Hoje a viver em Portugal, Caeiro identifica Taiwan como o ponto possível de grande fricção nos tempos mais próximos entre a China e o Ocidente.

"Mesmo hoje dentro da China onde há um crescente orgulho nacional impulsionado, em parte, pela forma como as autoridades conseguiram resolver e combater a pandemia, há um crescente discurso nacionalista que olha insistentemente para Taiwan. Os exercícios militares no estreito de Taiwan, conduzidos pela força aérea chinesa, são cada vez mais frequentes, quase diários mesmo nos últimos tempos. Repetidamente, as autoridades chinesas lembram que qualquer desvio de Taiwan no sentido de independência significa guerra", anota o jornalista português.

O investimento estrangeiro e a "diplomacia da vacina"

Economicamente, a China deve voltar-se para si mesmo a partir de agora, admite Marcos Caramuru de Paiva, sublinhando que a resposta à pandemia ficou marcada pelo impulso financeiro dado pelo Estado chinês às empresas privadas para que estas superassem a tormenta causada pela pandemia.

O antigo embaixador sustenta que a China abandona agora a lógica de definição de metas de crescimento e deve apostar numa estratégia económica centrada na produção de resultados económicos na frente interna.

"Vai ter que produzir na China bens que antes eram importados para não ficar numa situação de risco de não ter acesso a esses bens. Vai estimular mais o consumo interno e mesmo as importações trazidas para a realidade interna. Estimular menos o investimento direto chinês no exterior, como foi o caso da crise de 2008, em que os investimentos saíram muito. E vai querer mais investimento direto estrangeiro na China", prevê este gestor e antigo embaixador em Pequim.

Ao mesmo tempo, a China está já a aproveitar a pandemia para estender a sua influência em continentes menos favorecidos. Se há falta de equipamento médico ou de vacinas, a China vai tentar ser a fornecedora do chamado Terceiro Mundo.

"Mais de 20 países já se manifestaram dispostos a comprar as vacinas chinesas. E em África, a China vai fazer tudo para continuar a cativar e impressionar bem os países africanos. Antes, a China fazia grandes empreitadas de obras públicas em África como nunca se tinha feito no tempo Colonial. Agora, também no plano sanitário, a China irá seguramente investir bastante no fornecimento de vacinas e de apoio médico a países africanos e também a outros países da Europa", analisa António Caeiro na Renascença.

O brasileiro Marcos Caramuru acrescenta que a China fez mesmo acordos com vários países para testar as suas vacinas, "porque a doença deixou de existir lá na proporção que existia no Ocidente". Um exemplo é a cooperação com o instituto brasileiro Butantan para os ensaios de uma vacina de uma empresa privada chinesa.

"A China ainda não se tinha dado conta de que o mundo poderia vê-la de uma forma negativa. A diplomacia da vacina é uma tentativa de resposta a esse posicionamento. É também uma tentativa de mostrar que a China vê uma realidade internacional, não apenas a partir dos países com maior importância política, económica e militar, mas olha também para os países menores, para os africanos e latino-americanos", remata Caramuru.

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