10 set, 2021 - 08:31
Um documentário que estreou há dias nos Estados Unidos (The Outsider), sobre o Museu Memorial 11 de setembro, que abriu portas no chamado ground zero há sete anos, levanta questões importantes sobre a natureza e propósito daquele espaço simbólico. Os autores, Steven Rosenbaum e Pamela Yoder, sugerem que o museu deveria funcionar como catalisador de diálogo, como base de apoio para investigação académica independente e como agregador de interpretações diversas, dizendo-nos com isso que, naturalmente, não estará a ser esse o seu papel.
Quem por lá já passou percebe facilmente que o espaço assenta em três grandes ideias – o revisitar da cronologia dos ataques, a enunciação de episódios da tragédia humana e a afirmação de um carácter patriótico. Percebe ainda uma outra coisa – muitos dos objetos das exposições resultam, em grande medida, do trabalho dos média (as fotos, os excertos das emissões televisivas, as gravações das operações de salvamento, as primeiras páginas dos jornais nos dias seguintes).
Os média foram, nesse sentido e como acontece em muitas outras situações de rutura, não apenas território de testemunho mas, em simultâneo, de fixação de uma narrativa e de uma forma específicas para definir o momento em anos posteriores. Foi através dos média que os cidadãos norte-americanos e de todo o Mundo ouviram o presidente George Bush dizer, na altura, que “a América foi atacada porque é o maior farol da liberdade e oportunidade do planeta” e foi também através deles – e de segmentos televisivos ou páginas especiais com nomes como ‘América em Guerra’ ou ‘América sob ataque’ – que foram sendo preparados para um posicionamento bélico no Afeganistão e no Iraque com os efeitos complexos, duradouros e trágicos que todos agora conhecemos.
O jornalismo norte-americano reagiu com choque e exuberância a um momento invulgar e poderá argumentar-se que isso seria o expectável, perante acontecimentos tão extraordinários. Poderá até dizer-se – e talvez com razão – que pela primeira vez em muitos anos se percebia um alinhamento de sentimentos entre quem produzia a informação e quem a consumia. Mas, como escreveu o historiador James W. Carey, esse espanto, que deu forma e ritmo ao trabalho informativo, era em si mesmo sinal de uma falha grave – no pós 2ª Guerra Mundial, o Jornalismo tornou-se permeável a lógicas diferentes, com equipas de gestão empresarial que preferiam falar antes em ‘produção de conteúdos’ e que implementavam estratégias de afastamento de assuntos complexos em troca de uma sucessão de ‘casos’ (OJ Simpson, Tanya Harding, Monica Lewinsky-Bill Clinton, por exemplo) e da crescente substituição de temas políticos por temas de Economia e Finanças (taxas de crescimento, atividade da bolsa).
Nesse enquadramento, as perguntas do cidadão comum depois dos ataques – ‘Quem é esta gente?’, ‘O que é que se passa?’, ‘Porque é que nos odeiam?’ – eram, em setembro de 2001, em grande medida, também as perguntas da maioria dos jornalistas. E a resposta construiu-se, nos dias imediatamente a seguir, mas também depois disso, com linhas muito semelhantes às que deram forma ao museu do Ground Zero – revisitar com regularidade a cronologia, dar destaque a histórias individuais trágicas e envolver tudo isto naquilo que Joan Konner chamou ‘a cortina de patriotismo’. Terá sido precisamente essa cortina que, pouco tempo depois, pôs o Jornalismo alinhado com a chamada ‘Guerra ao Terror’ e que o impediu de perceber as deficiências graves nas provas apresentadas pela Administração norte-americana para justificar a segunda invasão do Iraque.
Foi muito, muito diverso e muito bom o caminho que alguns média norte-americano trilharam nas últimas duas décadas. A profunda crise do modelo de negócio acelerou algumas dessas mudanças e a expansão para o digital abriu novas oportunidades para vozes distintas e narrativas mais complexas. Mas o espanto (sim, novamente o espanto) expresso nalguns trabalhos jornalísticos sobre a catastrófica retirada recente do Afeganistão (‘Quem é esta gente?’, ‘O que é que se passa?’, ‘Porque é que nos odeiam?’), sugere que há uma debilidade crónica em temas que envolvem estratégias de expansão militar de Washington; o jornalismo digere ‘sem mastigar’ a linha oficial da administração e deixa-se embalar por ela ao mesmo tempo que se esforça para manter vivo o interesse das audiências em mais uma notícia sobre a Britney Spears.
Não é um exercício fácil. E pode – a médio e longo prazo – erodir ainda mais o lugar do jornalismo enquanto instituição, mas também trazer dano à saúde da Democracia naquele país.
Luís António Santos é Professor na Universidade do Minho