22 fev, 2022 - 17:28 • José Pedro Frazão, com Marta Grosso, Rosário Silva e João Malheiro
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O reconhecimento pela Rússia da independência das zonas separatistas da Ucrânia abre caminho à presença de forças russas naqueles territórios, mas isso não significa o risco de uma ofensiva militar contra a Ucrânia, defende o socialista João Soares, ex-presidente da assembleia parlamentar Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
“Isso permite, do ponto de vista formal, a entrada de forças russas nesse território, onde eles já eram acusados de estar e, provavelmente, tinham técnicos, mas não tinham forças russas, mas com um estatuto completamente diferente que eles designam de ‘forças de paz’. Mas isso não significa que haja, por enquanto, um risco de uma ofensiva militar contra a Ucrânia. Falavam que os russos queriam tomar conta de Kiev”, afirma João Soares.
Conhecedor da situação no Leste da Europa, João Soares liderou missões de observação naquela parte do continente e considera que a Europa não tem existido neste processo.
“A Europa, infelizmente, não tem existido neste processo, não tem uma voz que seja audível, como não teve na crise da Praça Maidan. Também foi muito mal interpretada por quem não esteve lá. A senhora Merkel pediu desculpa e assumiu que tinha sido enganada pela informação que tinha recebido. A Ucrânia é dos países mais democráticos da ex-União Soviética, agora, também é um dos países mais corrompidos e onde o domínio dos interesses e das plutocracias é muito complicado.”
João Soares critica a forma como o Ocidente tem conduzido a crise na Ucrânia e aponta o dedo aos Estados Unidos.
“Sou pró-Ocidente, mas os americanos estavam a prever um ataque militar à Ucrânia na quarta-feira da semana passada, com hora marcada, que não existiu. O que houve foi uma manobra político-diplomática, com alguma lógica, do reconhecimento da autonomia por parte da Rússia de dois estados que já eram autónomos, desde 2014 e estamos em 2022.”
Para João Soares, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa tem estado a atravessar uma fase muito decadente na intervenção da Ucrânia. Por outro lado, apesar de não servir de desculpa, Kiev também tratou mal a minoria russófona da Ucrânia, sustenta.
Vivemos hoje “em apneia” face ao que Vladimir Putin anunciou na segunda-feira, mas a atitude não surpreende Sandra Fernandes, Investigadora da UNIv-MINHO e especialista em Relações Internacionais.
Em declarações à Renascença, a especialista considera que Putin quer ser recordado como um grande líder e a Rússia tem de ser vista como o império de antigamente, tendo como principais inimigos à sua segurança e interesses os Estados Unidos e os seus aliados.
Isso mesmo refere a Nova Estratégia da Rússia – um documento oficial publicado no ano passado em julho, em que o país se fecha sobre si e assume uma postura muito defensiva, “algo que não pode ser ignorado quando pensamos numa saída diplomática”.
Neste momento, diz Sandra Fernandes, a Ucrânia é um país desestabilizado, sem data para entrar na NATO ou na União Europeia, enquanto Moscovo ganhou capacidade para ser ouvido.
A isto se junta “um sentimento de humilhação e o ir buscar uma grandeza passada que quer recriar na atualidade”.
Já o subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, Bruno Cardoso Reis, aponta que a NATO, logo em 2008, disse que não aceitava a Ucrânia como Estado-membro.
O especialista em política externa refere que, devido ao facto de a Ucrânia não controlar todo o seu território, com zonas separatistas em conflito, “muito dificilmente poderia fazer parte da NATO”.
Bruno Cardoso Reis critica os Estados Unidos por não estarem dispostos a usar meios militares e defende que o problema é mesmo “não haver vontade” para fazer frente à Rússia.
“No entanto, a União Europeia tem um papel crucial ao nível das sanções económicas. Serão, provavelmente, o meio mais importante de coação e contenção de Putin”, realça, ouvido pela Renascença.
O major-general Raul Cunha considera que a solução para o conflito entre a Rússia e a Ucrânia deveria ter passado pelo cumprimento dos acordos de Minsk. Em entrevista à Renascença, e face ao estado a que se chegou, o militar considera “pouco credível” que os russos avancem “em cavalgada” até Kiev, a não ser “no caso de a situação escalar imenso”.
“Em termos políticos, o que há declarado, oficialmente, se não me engano por um vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, é que eles vão garantir a proteção daquelas regiões, como estão neste momento, ou seja, nem sequer vão alargar ao chamado Donbass”, afirma.
Raul Cunha lembra, contrariamente ao que se diz, a Rússia não tem de respeitar os acordos de Minsk, pois “quem tem que os respeitar é quem os assinou como participante” e a “Rússia, a Alemanha e a França foram só testemunhas”, embora o Presidente Macron tenha feito “muito bem em tentar que os acordos de Minsk fossem cumpridos, passando por aí a solução de todo este problema”.
Conhecedor do terreno, com várias missões no seu currículo, nomeadamente ao serviço das forças especiais, quer da NATO quer da ONU, o major-general considera que há muitos interesses envolvidos, como o gasoduto Nord Stream 2 e os portos da Polónia dispostos a receber gás líquido.
Na entrevista à Renascença, o militar vai mais longe ao observar que há mais perdedores que vendedores neste conflito em escalada.
“Para já, quem perdeu foi a Rússia, perdeu muita credibilidade a nível internacional, perdeu a Ucrânia, aliás, a Ucrânia perde sempre em tudo, perde a Europa à exceção, talvez, da Polónia. Todo o resto vai perder”, acrescenta, aludindo a consequências também para todos.
“Vai passar a pagar o gás mais caro, a inflação vai disparar, etc, tudo porque a Europa não fez quase pressão nenhuma para que fossem cumpridos os acordos de Minsk na origem. Por outro lado, a Europa também não fez nada quando houve o golpe de Estado em Kiev e as forças mais radicais tomaram o poder, o que motivou a que a Crimeia fosse ocupada”, recorda.
Sobre a situação no Leste da Ucrânia, o militar acredita que os ucranianos estavam “decididos a resolver a questão das províncias separatistas, agora regiões reconhecidas pela Rússia”, tendo começado “a revelar algum cansaço”, o que “motivou a que as forças armadas russas concentrassem forças na fronteira”, assistindo-se “depois a uma escalada sucessiva de retóricas de parte a parte”.
“Em termos militares, eu penso que as forças ucranianas, por si só, teriam essa possibilidade, porque foram muito reforçadas, instruídas, receberam material muito mais consentâneo com as realidades atuais, e elas por si só tinham capacidade para resolver a questão das províncias separatistas, mas do lado russo isso é perfeitamente inaceitável”, atesta.
A professora de Relações Internacionais Lívia Franco diz que esta crise é “claramente regional”, mas que tem obrigado os EUA a prestar atenção à Europa, num contexto de bipolarização de poder com a China.
A especialista considera que os EUA estavam “mais distraídos da Europa” e preocupados com o regime chinês e que esse contexto deu condições a Putin para reforçar o lado da Rússia.
“A China reconhece que se encontra numa posição de grande complexidade e abomina tudo o que seja alteração de fronteiras. Por outro lado, interessa-lhe que haja este momento de fragilidade e vai colaborar com a Rússia na medida do possível”, explica.