24 mai, 2022 - 09:20 • Filipa Ribeiro
As lágrimas são frequentes nos olhos da avó Evgenia Mishchenko. Sentada na sala da nova casa, na Terrugem, em Sintra, confessa que nunca acreditou que a Rússia fosse capaz de invadir a Ucrânia. “Quando me diziam: vai haver uma guerra, vai haver uma guerra, eu não queria acreditar”, diz.
Durante os 77 anos de vida, ultrapassou várias situações difíceis, mas nada se compara aos últimos dias passados na Ucrânia. Além de ter de lidar com as memórias da guerra, Evgenia tem acompanhado o sofrimento da neta de 13 anos, Yana, que quando não está na escola, está fechada no quarto a pintar. “Ainda não falou sobre o que assistiu, só quer desenhar”, diz a avó.
Tem sido difícil perceber como é que Yana se tem sentido com a mudança de vida. A avó e o pai não conseguem interpretar os desenhos e não conseguem dizer se, porventura, existe relação entre o que pinta e o que viveu.
Tem sido complicado, porque, além do que viu agora, ela tinha já um trauma antigo. E da janela víamos tudo, mortos na estrada... ela via tudo. Sentava-se connosco e não dormia. Eu não dormi nesses dias e ela também não, estava muito preocupada.
Quando a guerra começou na Ucrânia, Yana estava ainda em processo de luto pela mãe, que morreu há cinco anos. Desde aí que a jovem se tornou mais reservada e ter passado por uma guerra não ajuda o processo de recuperação. A terapia tem sido o papel e a tinta.
A maioria dos desenhos feitos e pintados por Yana são mulheres. A imagem feminina é a mais presente no bloco de notas, “talvez por causa do que aconteceu à mãe”, acredita o pai, Sergey.
Desde que se mudou para Portugal, Yana pintou apenas um quadro sobe a Ucrânia. É uma paisagem, “uma imagem que guardou e que via da janela do quarto”, conta o pai. No quadro, colocado na secretária junto à sala de estar, está representada a floresta que ficava junto a casa da família Mishchenko, em Irpin, nos arredores de Bucha, a cinco quilómetros de Kiev.
Na Ucrânia, o pai tinha investido em materiais e tintas caras que tiveram de ficar para trás, assim como todos os quadros e fotografias das pinturas que Yana fazia.
Sergey Mishchenko queimou todo o material – pinturas, desenhos, um diário que Yana tinha escrito – e apagou fotografias e vídeos para que as tropas russas não tivessem nada com que implicar.
Em Portugal, a paixão pela pintura tem ajudado Yana a recuperar parte dos trabalhos. Com a ajuda de várias associações e amigos, Yana está a conseguir construir um pequeno atelier na sala da casa, com as tintas e os blocos que lhe têm sido oferecidos. Há desenhos pintados com pincéis e outros com espátulas.
A família Mishchenko vivia em Irpin, nos arredores de Bucha a cinco quilómetros da capital ucraniana, Kiev, uma das cidades mais atacadas no início da guerra.
“Quando o nosso prédio foi cercado, eu pensava que eram tratores. Depois vi que eram tanques russos. Eles entravam nos apartamentos, arrombavam a porta e largavam granadas. Ao nosso prédio chegou um tchetcheno, os homens estavam na cave e ele ameaçou-os. Os homens saíram de braços levantados e o meu filho pediu-lhe que não me fizessem mal a mim e à Yana”, conta Evgenia Mishchenko.
Nesse dia, começava o pesadelo. A família Mishchenko e os vizinhos foram todos colocados no ‘bunker’ do prédio – um espaço com cerca de quatro metros quadrados para 54 pessoas. Na entrada do prédio, tinha sido montado um posto de comando das forças russas. E a entrada do ‘bunker’ era controlada por um militar.
Da uma pequena janela conseguiam ver a destruição que os confrontos estavam a provocar. Nos primeiros dias, os vizinhos juntaram-se e, com madeiras, improvisaram algumas camas para que pudessem descansar. A dispensa do ‘bunker’ passou a ser uma casa de banho- Lá dentro colocaram apenas um balde.
“Todos os dias alguém colocava uma fita branca no braço e pedia para ir lá fora despejar o balde”, diz Evgenia.
Ainda assim, houve vizinhos que não chegaram a entrar no ‘bunker’. De acordo com a família Mishchenko, os homens foram colocados numa sala à parte, onde os obrigaram a despir-se. Os que tinham tatuagens referentes a símbolos ucranianos foram colocados noutra sala, os restantes foram autorizados a entrar no ‘bunker’. Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu aos vizinhos com tatuagens que faziam referência à Ucrânia.
Durante dez dias, ficaram fechados na cave do prédio sem luz, água e comida. A água passou a ser permitida. À semelhança do que faziam com o balde da casa de banho, todos os dias alguém colocava uma fita branca no baraço para ir comprar água.
Evgenia Mishchenko conta que os militares não incomodavam muito as mulheres e crianças, mas diz que constantemente eram ouvidas no ‘bunker’ explosões e tiros. “Tinha medo principalmente de me virar de costas para eles, porque me podiam atacar na cabeça”, confessa.
As poucas vezes que os homens saíam à rua era para fumar ou fazer favores às tropas russas.
Junto à cidade, há uma floresta. E eles ordenaram aos nossos homens que enterrassem os corpos das pessoas que tinham espancado e que estavam há quase uma semana espalhados nas ruas. E quando os homens estavam a enterrar os corpos, eles começaram a bombardear. Graças a Deus conseguiram salvar-se.
Os corpos que foram colocados em valas estavam nos quintais e nas ruas de Irpin, há mais de uma semana. Muitos eram vizinhos e conhecidos da família Mishchenko.
Evgenia confessa que ainda não parou de pensar ao que aconteceu a uma das vizinhas que enterrou o próprio filho no quintal.
“O jovem saiu de casa e tinha na mochila apenas o papel que tinha recebido a convocá-lo para as tropas ucranianas. Na rua foi questionado por um russo que, quando encontrou o papel, o matou. Pedi a essa vizinha que viesse para o nosso ‘bunker’, mas ela não quis, porque já não tinha vontade de se salvar”, conta.
A vizinha acabou por ficar para trás. A luz verde para abandonarem a cidade de Irpin chegou a 14 de março. À familia Mishchenko e aos vizinhos foram dados pelas tropas russas 15 minutos para se reorganizarem. Rapidamente conseguiram 14 carros para saírem da cidade.
Antes de saírem, as tropas russas ficaram com todos os telemóveis e bens que tinham no ‘bunker’. Foi nesse momento que o pai Sergey respirou de alívio por ter apagado todos os vídeos e fotografias que tinha tirado às ruas de Irpin destruídas e com corpos espalhados pelo chão.
Mas o principal alívio foi por ter queimado um diário de Yana, onde a jovem escrevia todos os dias o que se apercebia do que se passava a partir do ‘bunker’. A família perdeu todas as provas da destruição e do sofrimento provocado pela invasão, mas não hesitou em deixar tudo para trás até mesmo a casa, um apartamento novo, comprado há pouco tempo.
A família de Yana saiu de Irpin no dia 14 de março, em carros decorados com bandeiras brancas.
A caravana de 14 carros em que seguiam as 54 pessoas que estavam no ‘bunker’ viajou de Irpin para Zhaskiv, uma cidade a uma distância de mais de 160 quilómetros. Assim que chegaram a Zhaskiv, a família Mishchenko foi contactada pelos pais de uma amiga de Yana que estavam a viver em Portugal.
“O Ihor ligou e disse que tínhamos de vir para Portugal. Disse que os voluntários nos iriam ajudar”, relata a avó Evgenia. De Zhaskiv, Evgenia, Sergey e Yana seguiram viagem para Rivne e, no dia 17 de março, conseguiram passar a fronteira para a Polónia.
Apesar de na Ucrânia estar em vigor a lei marcial que impede a saída de homens, Sergey por ser o principal responsável por Yana, foi autorizado a sair. Depois de estarem na Polónia, rapidamente integraram uma caravana humanitária que os trouxe para Portugal. Quatro mil quilómetros depois, chegaram a Cascais no dia 22 de março.
Já em Portugal foram recebidos pela família amiga que os acolheu em casa durante duas semanas até que Sergey encontrasse um trabalho.
Sentada ainda na sala de casa, Evgenia fala de Portugal com um sorriso no rosto.
“Eu quero agradecer muito. Os portugueses são muito bons e os nossos ucranianos que estão cá também. Com a ajuda deles é tudo muito mais fácil. Se não fosse a ajuda dos portugueses, eu não sei o que seria de nós. A ajuda vem de todos os lados e é impossível ver isto e não ficar em lágrimas”, diz Evgenia com os olhos cheios de água.
Através de várias pesquisas, Sergey Mishchenko encontrou a Associação de Ucranianos em Portugal, que o ajudou a encontrar trabalho como pedreiro, a mesma profissão que tinha na Ucrânia.
A empresa na Terrugem, em Sintra, facultou um dos anexos atras da fábrica para a família viver. Uma casa pequena, com cozinha, sala, dois quartos e casa de banho. Apesar de as condições não corresponderem ao nível de vida que tinham na Ucrânia, a família não pensa em voltar ao país.
“Aqui estamos melhor, é mais calmo. Já era impossível viver bem na Ucrânia. O nosso coração está aqui.” diz a avó.
A família sabe que o apartamento que tem em Irpin continua intacto. “É um dos poucos que resistiu. Como servia de posto de comando das tropas russas, nunca foi atacado”, assegura a família, que evita pensar no que deixou.
O foco agora está em encontrar ajuda para Yana.
À semelhança de Yana, são muitas as crianças que têm chegado com cada vez mais reservas e traumas sobre o que está a acontecer na Ucrânia. Muitas vezes, há dúvidas sobre como é que o assunto deve ou não ser abordado. No caso de Yana, é o pai que tem assegurado essas conversas, mas ainda não conseguiu que a jovem se abrisse completamente.
O presidente do Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos e médico na Administração Regional de Saúde do Centro avança que já foram recebidos alguns pedidos de ajuda.
Paulo Baptista dos Santos explica que, como é uma situação recente, é ainda necessário perceber de que forma se deve encaminhar o apoio a estes jovens que chegam com perturbações psiquiátricas. “Há crianças que deixam lá os pais, que vieram sozinhas e isso levanta problemas”, explica o pedopsiquiatra.
De acordo com Paulo Baptista dos Santos, a primeira abordagem deve ser sempre feita pelos pais ou pelos responsáveis que acompanham as crianças. “No caso de os jovens rejeitarem a ajuda, a orientação deve ser assegurada pelos pais e responsáveis que também terão de ser orientados”, explica.
O pedopsiquiatra diz não haver certezas se esta vá ser uma geração marcada pela guerra. “A recuperação dos traumas vai depender sempre dos jovens e do contexto em que são colocados. Se houver uma maior normalização de contactos sociais com amigos e família, a situação é ultrapassada mais facilmente”, diz Paulo Baptista dos Santos, que fala de uma situação muto complicada.
Na Administração Regional de Saúde do Centro, o gabinete para a saúde mental tem já reunido um grupo de trabalho que está a estudar a melhor forma de ajudar estas crianças. Paulo Baptista dos Santos diz que a cooperação com escolas e Câmaras Municipais vai facultar a identificação dos casos que precisem de ajuda, mas que o problema que se pode colocar é a comunicação.
“Para a consulta, vamos precisar de intérpretes, porque muitos ucranianos não falam inglês e a maioria dos profissionais não fala ucraniano. Aqui teremos de contar com a colaboração de ucranianos que já vivem em Portugal há alguns anos”, explica.
Ao nível nacional, o Serviço Nacional de Saúde disponibilizou consultas para jovens e crianças ucranianas no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. O atendimento está a ser feito todos os dias com traduções asseguradas. À Renascença, a administração do hospital avança que já recebeu mais de 500 contactos e que há já vários adolescentes ucranianos a serem acompanhados nos serviços de psiquiatria. A linha continua a estar disponível através do contacto 967 059 865.