29 ago, 2022 - 06:20 • Ana Carrilho
A guerra na Ucrânia desviou as atenções e donativos internacionais. Em vários países, especialmente do Corno de África, a situação degrada-se todos os dias com a seca, falta de culturas e alimentos, que são cada vez mais caros.
“As crianças são as primeiras vítimas”, alerta Mariana Palavra, funcionária da Equipa de Resposta Rápida a Emergências da UNICEF, em entrevista à Renascença, dias depois de regressar da Somália.
A Somália é o maior e o mais populoso dos cinco países do Corno de África. Tem 16 milhões de habitantes e entre estes, milhão e meio de crianças que sofrem de subnutrição aguda. Um terço destas com subnutrição aguda grave.
“Ou seja, estamos a falar de meio milhão de crianças que estão literalmente entre a vida e a morte ”, sublinha Mariana Palavra, membro da Equipa de Resposta Rápida a Emergências da UNICEF e que concluiu nos últimos dias uma missão na Somália.
Mariana Palavra diz ainda que o número de casos de subnutrição tem acelerado nos últimos meses. Há cada vez mais pessoas a procurar ajuda nos hospitais e especialmente junto das organizações humanitárias, de que se destaca a UNICEF.
Além disso, a falta de água faz com que as pessoas a procurem em fontes menos seguras. “Estão a consumir água que não é potável, não é tratada e os casos de cólera aumentaram significativamente. Desde janeiro são já mais de 8.000”, diz à Renascença este elemento da organização das Nações Unidas para a Infância.
A guerra da Ucrânia tem impacto também em África: muitos dos países doadores, ainda a sofrer os efeitos da pandemia, já tinham reduzido as contribuições e a guerra desviou ainda mais fundos para auxílio aos milhões de refugiados ucranianos. Por outro lado, o preço do petróleo e da energia subiram em flecha e com eles, os dos alimentos que África precisa cada vez mais de importar.
A seca não é novidade para os países africanos, mas no caso da Somália, esta é a pior dos últimos 40 anos. Isso faz com que as populações abandonem as regiões onde não há água, onde não é possível cultivar os campos ou mesmo sobreviver. Em todo o país, há cerca de um milhão deslocados. “E estas crianças, em deslocação ou que ficam com as famílias em campos de deslocados, não estão a ir à escola. Estão a perder todas as oportunidades de ter um crescimento saudável”.
Mariana Palavra revela ainda o retomar uma prática que a UNICEF tenta travar há vários anos: o casamento precoce de raparigas. “Acaba por ser uma forma das famílias terem menos uma boca para comer”.
A assistência humanitária de organizações, como a UNICEF é, em muitos casos, a única com que as populações podem contar. Mas, trabalhar no terreno pode tornar-se muito complicado. As organizações são “um alvo a abater” por grupos terroristas islâmicos como o Al Shabad.
Um dos exemplos é o ataque do grupo ligado à Al-Qaeda a um hotel na capital, Mogadíscio, em que estavam alojados membros do governo e de organizações internacionais.
Há zonas ocupadas em que nem conseguem entrar; noutras, estas organizações humanitárias recorrem – em grande parte – a funcionários nacionais e que mais facilmente conseguem fazer o trabalho e interagir com as populações locais. Os funcionários internacionais acabam por ficar por um tempo muito limitado e sempre com segurança. ”É difícil e é um grande risco para os colegas das organizações com que trabalhamos, algumas baseadas na Somália”.
Desde o início do ano, a crise alimentar mundial já levou mais 260 mil crianças a sofrer perda de peso severa em 15 países atingidos pelo impacto da crise de forma particular, inclusive no Corno de África e na Região do Sahel, refere um relatório apresentado recentemente pela UNICEF.
No Corno de África (Somália, Etiópia, Quénia, Eritreia e Djibouti) e Sahel, o número de crianças com subnutrição aguda grave pode aumentar rapidamente de 1,7 para 2 milhões nos próximos meses.
Com maior número de casos e a perspetiva de aumento do preço dos alimentos terapêuticos em cerca de 16% nos próximos seis meses, a UNICEF apela ao aumento de ajuda monetária internacional. 1,2 mil milhões de dólares é o pacote financeiro necessário para prestar cuidados médicos e de nutrição a milhões de crianças nestes países mais afetados pela fome pala seca.
Além da ajuda dos estados, também os cidadãos, individualmente, podem contribuir. Mariana Palavra deixa um convite: “Visitem a página da UNICEF e vejam o que está a acontecer, por exemplo, na Somália. Sei que tem havido alguma desconfiança em relação às organizações internacionais e à forma como os fundos são gastos. Por isso, para ganhar a confiança das pessoas, primeiro é preciso que leiam, saibam o que se passa e o trabalho que é feito. E depois, cada um, encontrará a melhor forma de ajudar”.
RUTF (Ready-To-Use-Therapeutic) ou alimento terapêutico. É uma pasta pronta a usar, constituída por amendoins, açúcar, leite terapêutico, óleo, vitaminas e sais minerais. Não precisa de ser conservada no frio nem de ser tomada com água (o que nalguns casos, seria um risco) e pode conservar-se até dois anos.
Uma criança com subnutrição aguda grave deve tomar três saquetas/dia, durante três semanas, no mínimo.
Embora os preços dos alimentos que constituem esta pasta terapêutica tenham oscilações diárias, 150 saquetas custam atualmente cerca de 50 dólares.