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Ano negro no Mediterrâneo. Morreram 3.300 pessoas a tentar a travessia para a Europa

29 dez, 2023 - 06:00 • Miguel Marques Ribeiro

São mais mil mortos do que o registado em 2022. Ainda assim, o ano termina na União Europeia com a aprovação de um Pacto sobre Asilo e Migrações considerado "histórico", mas que algumas forças políticas e ativistas no terreno consideram ter o dedo da extrema-direita.

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Foi um ano particularmente difícil para o Geo Barents. O navio de salvamento de migrantes da Médicos Sem Fronteiras que atua no Mediterrâneo Central desde 2021.

“Sempre que há bom tempo há vários barcos a partir”, aponta Juan Matias Gil, um dos coordenadores responsáveis pelas operações da embarcação. Um ritmo no fluxo de migrantes que foi constante ao longo do ano. “Por certo, assistimos à duplicação em comparação com o ano passado”.

Isto resultou num ano negro: pelo menos 3300 pessoas morreram a tentar a travessia para a Europa, segundo números avançados pela MSF. São mais mil do que o registado no ano passado e o número mais alto de mortes desde 2017. “São mais pessoas que iniciaram a viagem, mais pessoas que morreram e mais pessoas intercetadas no mar”, refere Juan Matias.

Em Itália, os números do Ministério do Interior indicam que desembarcaram no país 155.201 pessoas até esta quinta-feira. Um crescimento de cerca de 50% quando comparado com 2022 (ano em que se registaram 103.469 entradas) e de 2,33 vezes relativamente a 2021 (quando chegaram 66.482 pessoas).

O estatuto de “país sob pressão migratória”

“Há uma pressão gigante”, admite Nuno Melo. O eurodeputado faz parte da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE) a quem coube negociar o Pacto sobre Asilo e Migração (PAM) da União Europeia, anunciado há cerca de uma semana.

Com o acordo alcançado entre os eurodeputados e os estados-membros passa a existir um enquadramento legal comum a todos os países na forma de lidar com os requerentes de asilo e os migrantes.

O documento reconhece, em particular, o estatuto de “país sob pressão migratória”.

“Na Líbia criaram um negócio, fazem das pessoas uma mercadoria"

O objetivo, diz o líder do CDS/PP, é “garantir que o impacto dos fluxos migratórios não incide apenas sobre os países que recebem a maior parte dos migrantes”, como Itália ou Grécia, mas é distribuído por todos os parceiros da União, numa base solidária.

O PAM propõe-se assegurar, no mínimo, 30 mil transferências de migrantes, dos países que recebem mais pessoas para os que recebem menos, com base num pacote financeiro de 600 milhões de euros.

A solidariedade entre os estados-membros fica assim garantida, mas há igualmente o propósito de reduzir o número de migrantes que entram no espaço europeu.

“Tenta-se também um controlo dos fluxos migratórios, nomeadamente fixando-se quotas e facilitando-se o repatriamento”, acrescenta Nuno Melo.

Um ciclo de violência exercido pelos contrabandistas

Numa publicação no X, a presidente Roberta Metsola, considerou que o PAM é um “marco” que “ficará para a história”.

No entanto, o representante da Médicos Sem Fronteiras, Juan Matias Gil, tem dúvidas sobre a eficácia das medidas agora aprovadas pelas autoridades europeias.

“Este pacto não traz nada de novo, não vai reforçar o sistema de asilo. Vai colocar mais barreiras a quem chega às fronteiras europeias. Vai legitimar a violência exercida nas fronteiras, sobretudo no leste e também no sul”.

Em fevereiro de 2023, o Geo Barents ficou retido num porto italiano, por força de uma nova lei italiana que obrigava as embarcações que fazem resgate de migrantes a apresentar o gravador de dados de viagem (VDR, na sigla em inglês), uma espécie de "caixa negra" da navegação que é semelhante ao gravador de dados de voo que as aeronaves possuem.

“Fomos colocados perante um dilema”, admite o ativista: “devemos proteger o navio ou fazer tudo para salvar vidas”.

Mais tarde, o Geo Barents conseguiu autorização para voltar a fazer-se ao mar e retomar a atividade, mas o período passado em detenção exprime o clima de intimidação que se vive em Itália contra os grupos de ativistas que fazem operações de salvamento no Mar Mediterrâneo.

Bloquear as ONGs, que representam apenas 10% das entradas em Itália, não vai impedir os migrantes de decidir tentar entrar na Europa”, adverte Matias Gil.

O problema é a existência de um ciclo de violência do qual os migrantes só conseguem escapar entrando na União Europeia.

"Houve uma pressão da extrema-direita que conseguiu entrar nas negociações"

“Na Líbia criaram um negócio, fazem das pessoas uma mercadoria. Há um ciclo organizado e sistematizado de violência, em que as pessoas são postas em barcos, para depois serem intercetadas pela guarda costeira”. Gil lembra que as próprias Nações Unidas demonstraram que existe um conluio entre os contrabandistas e as autoridades líbias.

“O governo líbio ganha dinheiro com a União Europeia, que lhe envia dinheiro, e lucra com os próprios migrantes que pagam a travessia”.

Entre a "influência da extrema-direita" e o "lirismo" de esquerda

O PAM tem ainda de ser aprovado no Parlamento Europeu, mas alguns eurodeputados, como a bloquista Marisa Matias têm dúvidas sobre a eficácia das medidas preconizadas. “É um mau acordo que tem vários problemas”, afirma.

“O primeiro é haver uma espécie de suspeição permanente associada aos fluxos migratórios, como se as pessoas migrantes fossem à partida suspeitas de qualquer coisa”. A lógica subjacente ao documento é “muito securitária, muito de controlo” e, defende a bloquista, acaba por “permitir que os países tenham políticas que vão completamente contra o que é a carta dos direitos humanos a nível europeu, que é o direito internacional”.

Uma segunda lacuna do acordo, segundo Marisa Matias, é a “ausência de políticas de imigração decentes e dignas, de integração de migrantes no mercado de trabalho legal”. A eurodeputada lembra o estudo apresentado recentemente pelo Observatório das Migrações que revela que os imigrantes são responsáveis por cerca de 1600 milhões de euros de contribuições para a Segurança Social em Portugal.

"Radical é quem propõe uma política de portas"

“É bem conhecido que as populações migrantes contribuem positivamente para as contas dos países, nomeadamente para a segurança social. É preciso que haja políticas de migração que favoreçam a integração no mercado de trabalho e não manter os migrantes numa situação às vezes de quase escravatura, obviamente sem acesso a muitos serviços, mas também sem contribuições. E isso é que distorce a realidade”, declarou.

Marisa Matias alude ainda à influência que as forças de extrema-direita exerceram sobre o texto final. “É um acordo que demorou muito tempo a ser negociado. E, ao longo desse tempo o que foi acontecendo foi que foi piorando o acordo. Houve uma pressão da extrema-direita que conseguiu entrar, digamos assim, nas negociações”, esclareceu.

Nuno Melo tem uma opinião distinta. “Radical é quem propõe uma política de portas abertas e que vem quem quer. Não há nenhum país do mundo, nenhum mesmo, onde quem quer entrar o pode fazer apenas porque quer”.

O democrata-cristão defende que é a desregulação da migração que está a dar azo ao crescimento da extrema-direita.

“Este lirismo leva a consequências graves também do ponto de vista político, o que faz com que o fenómeno tenha que ser encarado com racionalidade e com lucidez, senão, no limite, gravemente prejudicado é o próprio regime democrático”, afirma.

Nuno Melo argumenta que “muitos dos extremismos depois crescem pela perplexidade das sociedades em relação a um fenómeno que está em evidente descontrolo”.

Um quarto dos migrantes que tentam a travessia são menores não acompanhados

Com ou sem portas abertas os migrantes vão continuar a tentar, contrapõe Juan Matias Gil, dos Médicos Sem Fronteiras.

Vão para o mar sem equipamento apropriado, sem coletes salva-vidas, sem saber nadar ou navegador”. São pessoas que não querem saber dos obstáculos, porque estão desesperadas para sair de onde estão.

Aqueles que são resgatados ao mar “trazem sinais de violência física, violações, assédio sexual, tortura, violência psicológica”.

Depois que entram no navio o objetivo de cada um dos 35 membros da tripulação é garantir-lhes uma zona de conforto. “Fazê-los sentir que o perigo e a violência acabaram”. No Geo Barents "podem alimentar-se, tomar duche, vestir roupas novas para se sentirem quentes". Outra preocupação é fazer "uma vistoria médica imediata. Para que as situações de emergência possam ser tratadas. Se necessário, fazemos evacuação médica para terra".

Os problemas de saúde mais comuns dos migrantes retirados das águas são a desidratação, as queimaduras e doenças de pele adquiridas no local em que estiveram na Líbia. "Providenciamos o tratamento adequado", sublinha Matias Gil. "E claro que a maioria precisa de apoio psicológico”. Um processo que, ressalva o responsável de operações do Geo Barents, demora anos, mas que dá os primeiros passos já no navio, com a realização de sessões de grupo.

Esta vertente adquire grande importância uma vez que há mais menores a tentar a travessia. Em 2023, os Médicos Sem Fronteiras resgataram do mar 4300 pessoas. A esmagadora maioria são homens, mas 30% do total são menores, 90% dos quais viajaram sozinhas, sem o acompanhamento de um adulto, refere o ativista da MSF.

Isto representa mais de um quarto do total. E se há algo que 2023 demonstra é que a construção de novos muros dificilmente conseguirá dissuadir estas pessoas de tentar chegar à Europa.

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