14 jul, 2024 - 16:45 • José Pedro Frazão
Numa reflexão breve sobre a tentativa de assassinato de Donald Trump, José Alberto Azeredo Lopes anota a forte resposta de Trump em termos de comunicação política desde o momento em que foi atingido na Pensilvânia e analisa a reacção de Joe Biden num quadro político de grande divisão. O papel das redes sociais e das 'verdades alternativas' contribuem para reforçar o apoio a Trump, vítima de um incidente que a segurança deveria ter evitado, afirma o professor de relações internacionais.
Tendo em conta o clima político que se vive nos Estados Unidos, o que aconteceu foi uma falha do ponto de vista dos serviços de segurança?
Sim, inevitavelmente tem que se considerar que foi uma falha. Trata-se de alguém que conseguiu colocar-se numa posição que necessariamente tinha que ser favorável para atingir os objetivos, tão favorável que conseguiu atingir Donald Trump. É mau sinal. Não houve uma ação preventiva suficiente para evitar que, desde logo, uma pessoa se colocasse numa posição de supremacia em relação ao local onde Donald Trump ia falar que lhe permitissem ter a definição de um alvo com aquela facilidade. Infelizmente, parece-me que aqui há questões que vão ter que ser colocar, independentemente de não admitir qualquer tese da conspiração ou de negligência deliberada para que este acontecimento pudesse ter lugar.
O que é que lhe sugere a saída de Trump de punho erguido e a dizer "lutem, lutem" para os seus apoiantes?
Sugere-me que o senhor deve ter realmente um estômago grande. É um momento, uma imagem fortíssima, politicamente muito carregada. Aliás, Donald Trump aparentemente fez questão de, depois de transportado para o hospital, descer do avião pelo seu pé sem qualquer apoio. É evidentemente um momento muito importante, até do ponto de vista da comunicação política. E reforça algo que, como adianta o Washington Post, alguns consideram ser um momento de viragem muito importante na campanha, que reforça evidentemente a posição de Donald Trump.
Os setores mais radicais que apoiam Donald Trump imediatamente foram para as redes sociais acusar o 'Estado profundo' ('deep state',um termo que Trump gosta muito de usar), invocando por isso uma lógica de conspiração de planeamento do assassinato do candidato republicano. Houve mesmo um elemento da Câmara dos Representantes, Michael Collins, que literalmente publiquem um tweet a dizer que foi Biden que deu as ordens. Portanto, temos que prever, infelizmente, que este acontecimento vai ainda radicalizar mais a campanha.
É evidentemente um momento muito importante, até do ponto de vista da comunicação política. E reforça algo que, como adianta o Washington Post, alguns consideram ser um momento de viragem muito importante na campanha
Tenho também que dizer que à primeira vista, este tipo de acontecimentos favorece sempre a vítima e, sobretudo, se a vítima, como Donald Trump, conseguiu mostrar força, resistência e revolta perante aquilo de que foi objeto. Estas imagens são muito Fortes e também por isso acredito, por exemplo, que Biden tenha imediatamente 'ido a jogo' para criticar fortemente e para mostrar quanto é contra este tipo de situações, dizendo aliás que ficou muito feliz por nada de grave ter acontecido a Donald Trump.
Estados Unidos
Vídeo mostra momento em que ex-Presidente dos EUA (...)
Era o mínimo que se esperava numa situação destas. Mas, sem querer ser também eu próprio conspirativo, acho que o campo democrata percebeu que este pode ser um momento muito importante e por isso também todos acorreram a desautorizar, a criticar, a mostrar a sua repulsa perante tentativas de assassinato.
Vamos ter a Convenção Republicana nos próximos dias e além disso, mantém-se ainda o debate em torno da exposição de Biden, que este fim de semana, apesar de tudo, apareceu com um pouco mais de energia no comício que fez em Detroit. Nos próximos dias poderemos ter um reforço muito consistente de Trump nas sondagens, talvez também por via deste incidente? E, por outro lado, a resposta do Biden, apesar de tudo, marca alguns pontos importantes no contexto pré-eleitoral?
A resposta de Biden era de contenção de danos. Tenho a certeza que ele sempre o faria, independentemente de vantagens ou inconvenientes de campanha. Agora, era o mínimo que tinha que fazer imediatamente. Aliás, cancelou as ações de campanha para estar na Casa Branca a acompanhar os relatórios que vão sendo fornecidos sobre este atentado.
Foi um atentado num país que tem muitos. Já houve vários Presidentes norte-americanos assassinados: Abraham Lincoln, Garfield, McKinley, Kennedy, que é talvez o mais conhecido nos tempos mais recentes. Vários candidatos foram também assassinados, como o irmão de Kennedy, Robert Kennedy, assassinado em 1968. Reagan foi objeto de um ataque muito grave em 1981, que aliás, deixou mazelas para sempre. Theodore Roosevelt escapou a um atentado. Não faltam muitos casos desta natureza.
Não sou capaz de antecipar se vai haver um reforço nas sondagens para Trump, mas tenho a certeza de que, se dúvidas houvesse, as fileiras de Trump vão estar muito mais unidas, muito mais militantes, porque têm agora uma vítima.
É uma sociedade politicamente violenta e, infelizmente, creio que, sobretudo que nos dias que correm, é uma sociedade extremamente polarizada, muito dividida, muito hostil para com aquilo que considera o inimigo. A explosão, literalmente, nas redes sociais de acusações graves de conspiração, de interesses poderosos que os apoiantes consideram que não querem que Trump venha a ser Presidente, vai ter um efeito útil para Trump.
Não sou capaz de antecipar se vai haver um reforço nas sondagens para Trump, mas tenho a certeza de que, se dúvidas houvesse, as fileiras de Trump vão estar muito mais unidas, muito mais militantes, porque têm agora uma vítima. Alguém que sobreviveu e é tão forte que ergueu o punho e lhes disse para irem à luta. E isso contrasta , infelizmente, com os sinais de relativa fragilidade que se têm sentido em Joe Biden.
Estou a caricaturar um pouco, mas Donald Trump leva um tiro na orelha, está a escorrer sangue, levanta o punho e diz para lutarem e Joe Biden luta com as palavras para não se enganar no nome do Presidente Zelensky, seguida do da Vice-Presidente. Estou a apresentar uma caricatura mas creio que, infelizmente, vai fazer parte do discurso político norte-americano daqui até as eleições.
Tenho sérias dúvidas sobre se os democratas deviam ter sido tão fortes ou brutais a pedir a Biden que se retirasse. Tenho também outra certeza: a partir da Convenção Democrata, todos os dias e em todos os instantes, essas debilidades de Biden vão ser expostas, caricaturadas, ridicularizadas.
Há um sinal muito interessante, que é a arrogância, por exemplo, com que Netanyahu diz que vai dizer o que tem a dizer perante o Congresso norte-americano, como se não existisse Presidente. São sinais que se estão a acumular. A sociedade americana está realmente muito, muito, muito, muito partida. E também parece-me claro que em acontecimentos desta natureza - com tudo o que depois vai sair a jorros sobre a origem do indivíduo, sobre a sua família, sobre se era ou não democrata, sobre se se registou como republicano apenas para disfarçar - podemos ter a certeza de que não vão faltar massivamente teorias que, no final de contas, vão, em princípio, favorecer Donald Trump.
A violência política de facto já existiu ao longo da história dos Estados Unidos. Mas qual é o factor que a pode catapultar? E sem querer fazer futurologia até Novembro na disputa política norte-americana, será que essa polarização e a agressividade nas redes sociais é um fator novo que nos impede de comparar com outras reações a episódios semelhantes no passado na história política norte-americana?
É uma bela pergunta e é uma pergunta difícil, Sou muito crítico, não propriamente contra as redes sociais -não padeço dessa doença - mas por não termos mostrado capacidade, ao longo dos anos, para propormos alternativas, desde logo jornalísticas, a respeito do acesso à informação. Hoje renunciámos de alguma maneira à função jornalística e à importância fundamental para uma sociedade que medeie entre os factos e depois a interpretação dos factos e as nossas convicções.
Hoje isso parece-me evidente, até pela multiplicação das plataformas e pela incapacidade que os Estados têm mostrado - e nomeadamente os Estados Unidos - em conceber um qualquer modelo que permita contrabalançar aquilo que outros já consideram muito claramente como a 'pós-verdade'. Ou seja, diz-me uma coisa e é a sua verdade, eu digo outra e é a minha verdade e não interessa qual é que é a verdadeira mesmo, pois cada uma delas aparenta ter um valor igual. Ouço cada vez mais: 'é a sua verdade, é a sua opinião'.
Recordo, aliás, que é com Donald Trump e com uma das suas ajudantes que nasce a expressão célebre dos 'factos alternativos', ou seja, que nós podemos estar a ver uma coisa, mas se o nosso interlocutor disser que é outra, estamos dispostos a aceitar que podemos viver bem com isso e pronto.
Isso é um terreno muito fértil para o primarismo, para a radicalização e necessariamente para a violência, porque é um dos instintos mais primários da condição humana. Chamo, aliás, a atenção para que não é só nos Estados Unidos. Robert Fico, na Eslováquia, ainda há pouco tempo foi atingido gravemente por um atacante que disparou sobre ele, porque sim, não se sabe porquê.
É um regresso a formas de violência política que parecem, pelo menos em parte e dizendo-o com alguma honestidade, poder ser explicadas pela nossa incapacidade de estabelecermos regras mínimas ao discurso, à sua consistência, com sistemas de verificação que permitam ao cidadão ir um bocadinho mais além do que aquelas mensagens brutais muito curtas, de meia dúzia de caracteres que lhe vão consolidando convicções. E depois pode-lhe apresentar a verdade à frente, mas ele não quer saber.
Isso é um terreno muito fértil para o primarismo, para a radicalização e necessariamente para a violência, porque é um dos instintos mais primários da condição humana.
Isso não é culpa dele, mas seguramente de um sistema de comunicação em que, infelizmente, vejo uma crise grave daquilo que considerava como um modelo jornalístico, por razões económicas, de pressão, de instantaneidade da comunicação.
Estas situações, creio, são imediatamente digeridas por estas redes e depois podemos nós fazer o que quisermos que as convicções já estão formadas. Cada um está fechado com a sua tribo e a verdade circula dentro daquela tribo, sendo irrelevante o que possamos dizer. Nesse sentido, essa é uma das razões principais pelas quais acho que este atentado contra Donald Trump vai necessariamente consolidar as suas tropas. E, infelizmente, creio que pode até ajudar a sua campanha.