Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Entrevista a Donna Kim

América dividida? "No Havai sentimo-nos desligados do resto dos Estados Unidos"

25 ago, 2024 - 15:26 • José Pedro Frazão

Há 65 anos nesta semana o Havai tornava-se o 50º estado norte-americano, tradicionalmente democrata, onde nasceu Barack Obama. Os portugueses deixaram o ukelele, as sopas e as salsichas e resta ainda 10% da população com origens portuguesas. 99% da comunidade luso-descendente não fala português, como Donna Kim, cujos avós eram coreanos mas também portugueses de São Miguel. Senadora democrata no Havai há 22 anos, diz-se preocupada com a fratura social e política que se vive na sociedade americana a poucos meses das eleições presidenciais.

A+ / A-

Donna Mercado Kim ocupa cargos políticos há 42 anos no Havai. Membro do partido Democrata, eleita no Havai onde é senadora estadual, foi presidente da Federação Nacional das Mulheres Legisladoras, representando todas as eleitas nos Estados Unidos. De passagem por Lisboa onde esteve no "Diálogo de Legisladores" que junta os eleitos americanos de origem portuguesa, esta veterana da política havaiana assegura que as divisões sociais e políticas não são tão profundas no estado situado no Pacífico. A distância e a história têm o seu peso e a biografia de Donna Kim ajuda a explicá-lo.

Quando olho para si, vejo feições sobretudo coreanas. Onde está a sua herança portuguesa?

A minha herança portuguesa vem da minha avó. Os meus pais vieram de Vila Franca do Campo, na Ilha de São Miguel nos Açores no final do século XIX, no navio 'Earl Dalhausie' que também transportava a estátua do rei Kamehameha [ primeiro rei das ilhas havaianas] que se encontra no palácio no Havai. Foram para a Ilha Grande, o Havai, onde se estabeleceram numa leitaria. Não tenho a certeza se eram os donos ou apenas trabalhavam nessa leitaria. É curioso, porque quando visitei os Açores, vi as vacas a andar nas ruas e em todo o lado, então isso tudo fez sentido. Os laticínios do Havai foram mais tarde extintos e temos hoje de importar leite da Califórnia, pois o custo de mão-de-obra seria muito elevado no Havai.

A minha avó era conhecida como 'curandeira portuguesa', ou seja uma espécie de 'feiticeira', em português. As pessoas vinham por toda a ilha para a minha avó os curar da dor de estômago ou quebranto - nós dizemos 'cubrant'. A minha mãe aprendeu a cozinhar comida portuguesa, com muitos molhos. Nós usávamos a palavra 'mulha', pois a nossa pronúncia no Havai é diferente por causa da nossa multiculturalidade, com tantas nacionalidades diferentes que alteram as palavras em português. Um dos pratos populares que a minha mãe me ensinou a cozinhar, e que ainda hoje faço, é o vin'dalho [vinha d'alhos] onde se marina a carne de porco durante três dias. Sabe-se, claro, que o ukulele veio dos portugueses. Temos também a guitarra 'steel', o nosso pão doce, salsicha portuguesa, sopa de feijão portuguesa.

É uma presença alargada ou é apenas uma expressão minoritária?

Tudo isto está não apenas na nossa vida, mas na cultura havaiana. A salsicha portuguesa vende-se em todo o lado e em criança angariávamos dinheiro para as viagens escolares a vender salsicha portuguesa ou pão doce português. Os turistas compram as nossas 'malasadas' e as sopas de feijão fazem parte dos menus das cadeias de comida rápida. Até a McDonald's, que nunca alterou o seu menu em nenhum lugar do mundo, serve ovos, salsicha portuguesa e arroz em exclusivo no Havai.

Mas Portugal é uma memória distante para esta comunidade?

Sim. E assim foi também para mim, por causa das misturas de povos. O meu pai é coreano e a minha mãe é filipina, de origem portuguesa e espanhola. A minha bisavó tinha também algumas ligações à Polónia. Eram histórias que ouvíamos da minha avó quando éramos crianças. Há uma presença portuguesa na 'etnia havaiana'. O meu filho é de origem coreana, espanhola e filipina, mas o pai dele é havaiano de origem chinesa e portuguesa. Temos muita influência asiática e, estando o Havai no Pacífico, sentimo-nos mais próximos da cultura asiática do que realmente da cultura europeia e dos portugueses. A história de Portugal e a sua atualidade não é algo que esteja muito presente em nós. Descobri entretanto uma organização portuguesa que fez a minha árvore genealógica e fiquei muito surpreendida com os diferentes nomes portugueses com os quais posso estar relacionada.

Chegou a aprender português quando era criança?

Aprendemos apenas algumas palavras em português com a minha avó, mas não passou disso. No bairro onde vivíamos havia muito mais japoneses. Acabei por ir para a escola japonesa e, por causa de todos os vizinhos, aprendemos muitas palavras japonesas que se misturaram com as portuguesas, criando diferentes tipos de palavras. O havaiano com origem portuguesa fica nos chamados 'hapa', que se refere a uma pessoa 'metade branca' na sua ancestralidade. Quando o asiático se mistura com o português, as pessoas havaianas ficam muito atraentes.

O Havai e Portugal estão muito distantes. É possível haver uma renovação deste vínculo?

Acredito que hoje as pessoas estão cada vez mais conscientes da sua ancestralidade e por isso cada mais pessoas vêm a Portugal, incluindo Madeira ou os Açores. Muita gente do Havai veio da Madeira, não tanto dos Açores. Claro que aprendemos na escola sobre os navegadores portugueses e espanhóis. É interessante observar no terreno os lugares que aprendemos no ensino básico e intermédio sobre a história portuguesa e europeia. Foi por isso que vim a Portugal e também ao 'Diálogo de Legisladores' organizado pela FLAD [Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento]. Como representante eleita nos EUA venho para ver o que podemos aprender com os portugueses. Tal como fomos influenciados pelos portugueses na nossa história, podemos continuar a sê-lo pelos avanços portugueses nas energias limpas e outras áreas em que os portugueses estão a assumir a liderança.

Em que é que a América do Havai é hoje diferente da América continental?

A nossa forma de viver, a que chamamos de 'espírito Aloha', é a sensação de que todos nos podemos dar bem. Como somos um caldeirão de diferentes nacionalidades, não olhamos para as pessoas como minorias. Somos todos minorias e por isso aceitamos e compreendemos as diferentes culturas, ao contrário do resto dos Estados Unidos, onde há claramente divisões entre os anglo-saxónicos, os negros, os hispânicos ou os orientais. No Havai isso tudo acabou, através dos casamentos tudo foi misturado e todos nos damos bem. Brincamos com as nacionalidades uns dos outros. No Havai há muitas piadas com portugueses, mas realmente divertidas. Não consideramos que isso nos rebaixe, apenas serve para fazer troça de nós próprios e das diferentes nacionalidades.

A sociedade americana atravessa agora um momento de tensão, de fraturas, políticas e sociais. Como descreveria o seu país neste momento?

Exatamente como disse. E é para nós alarmante ver isso a acontecer, porque no Havai somos tolerantes com as diferenças, acolhemos e olhamos para as pessoas pelo seu valor e não necessariamente pela cor da sua pele. E é preocupante para nós ver o Congresso com essa divisão. Na nossa organização legislativa no Havai, temos 25 senadores e 51 membros da Câmara de Representantes. É claro que temos diferenças de opinião, mas não somos tão antagónicos como parecem ser no resto dos Estados Unidos. Não há uma marcação de linhas divisórias. No entanto, isso não quer dizer que não vemos cada vez mais jovens a entrar na arena política como progressistas e expressando muitas vezes este tipo de antagonismo.

O que está a alimentar esse antagonismo?

Penso que é um sentimento forte com base em diferenças de opinião sobre como fazer as coisas, juntando o facto de ao longo dos anos não termos conseguido resolver todos os problemas. No Havai, os Democratas estão no poder há muito tempo e ainda não resolveram todos os problemas. Mas a vida é assim. É mais fácil falar sobre os problemas do que realmente resolvê-los e a sensação das pessoas é que precisamos de dar tudo de forma gratuita. Habitação gratuita, educação gratuita, mas quem vai pagar isso? Eles defendem que os ricos e as empresas devem pagar, mas, a dada altura, se não for rentável para as empresas e para os ricos, simplesmente irão embora e não vão ficar no Havai. Portanto, há uma diferença entre os têm e os que não têm. Cada vez mais pessoas avaliam o custo de vida no Havai, porque é o paraíso, mas também um tipo de 'economia de resort' cujos custos são difíceis de suportar pela média.

Em todo o país, onde está a raiz desta polarização?

É difícil dizer. Nós, no Havai, sentimo-nos um pouco desligados do resto dos Estados Unidos, porque estamos no meio do Pacífico. Quanto mais nos afastamos de Washington, menos nos preocupamos com as questões federais. Sempre que chego a Washington, isso torna-se mais predominante. No Havai, não somos afetados por toda a imigração que chega das fronteiras do sul. Embora possamos receber parte dela, a nossa imigração vem das Filipinas, do Japão, da Micronésia e de algumas ilhas da Polinésia.

Não há problemas de imigração no Havai?

Temos alguns problemas, mas não como os que estão a enfrentar no continente. Os nossos problemas são mais com os micronésios, porque há um pacto em que os Estados Unidos deram aos micronésios a possibilidade de poderem vir para a América e obter serviços médicos gratuitos. E, por causa desses serviços, o governo federal não está a reembolsar o estado do Havai. É esse tipo de pressão que nós temos.

Dirigiu a Fundação Nacional das Mulheres Legisladoras. A partir desta base, como vê as mulheres na política na América?

A Fundação existe para benefício de todas as mulheres eleitas. Fornece-nos formação de apoio numa série de questões que afetam as mulheres, mas muitas das questões que cobrimos transcendem isso. As mulheres tendem a ter muito mais preocupações e damo-nos melhor do que os homens. Nós, mulheres, não somos assim tão antagónicas. Este é um grupo apartidário, de todos os estados, com republicanos e democratas, e conseguimos chegar a acordo numa série de temas, como direitos humanos, família, cuidados de saúde, habitação acessível, e as questões das mulheres.

Tópicos
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+