Albano viu o seu gestor de conta no BES a subscrever papel comercial em seu nome – sem consentimento. Ao pai de Marta e a António prometeram um produto sem risco, muito mais interessante do que o depósito a prazo. Estão entre os 2.500 clientes do BES que investiram em papel comercial do Grupo Espírito Santo (GES) e têm as suas poupanças congeladas.
Dizem-se enganados – pelos gestores de conta, pelo banco em quem confiaram – e ignorados – pelas autoridades. Mas a
Renascença também ouviu o relato de um gestor, que não quis ser identificado, que se sentiu "manipulado" pelas chefias, nesta matéria. E há relatos de responsáveis por agências bancárias que dão conta de incentivos aos gestores para venderem papel comercial do GES. Fala-se em visitas domiciliárias aos clientes, da abertura de garrafas de champanhe para brindar à subscrição.
A história começa da mesma forma em vários casos: o cliente detinha um depósito a prazo no BES, a maturidade aproximava-se e, entre Janeiro e Fevereiro de 2014, surge um contacto por parte do gestor de conta. Fala de um produto garantido, com uma taxa de juro ligeiramente superior à do depósito, e sugere a subscrição de papel comercial do GES.
É assim que começa a história de Marta Lestro. A bióloga, de 37 anos, dá o seu testemunho em nome do irmão mais velho, incapacitado devido a um acidente que aconteceu há mais de 20 anos.
Tornaram-se clientes do BES para depositar a indemnização compensatória do acidente. Já não esperavam receber o dinheiro, que lhes ajudou a pagar os tratamentos.
Marta e o irmão, antes do acidente "Decidimos procurar um banco que nos oferecesse confiança", conta. O BES foi o banco que lhes "ofereceu mais confiança": "era um banco muito antigo, com muito prestígio, muitos valores e muitos clientes". Mais: o banco de Ricardo Salgado "era o único banco que não tinha recorrido à ajuda da troika".
Em 2013, fizeram um depósito a prazo no BES. Meses depois, começaram a receber chamadas da gestora de conta: não quereriam mudar para um produto melhor?
"O meu pai tem 70 anos, é uma pessoa que assume os seus compromissos de honra, está habituada a negociar com gente séria e foi educada a selar os seus negócios com um aperto de mão. Houve aqui uma falta de respeito para com muitas pessoas, nomeadamente pessoas como o meu pai: pessoas iletradas, pessoas mais velhas, que confiam, pessoas que não têm noção", critica Marta Lestro.
"Uma pessoa que nunca teve nenhuma aplicação financeira em nenhum banco, e muito menos naquele de que era cliente há um ano, muito me espanta que lhe tenha sido oferecido [este produto]."
A jovem mãe de dois está sentada numa poltrona na sala de casa dos pais em Rio Maior, rodeada de mesinhas com fotografias de família, imagens de um tempo mais fácil. A conversa é interrompida pela mãe – a menina acordou da sesta.
Na sala de trás, o irmão vê televisão com o pai e o outro sobrinho. É uma família unida e feliz, apesar da situação actual. Mas Marta tem medo do futuro e da responsabilidade que sabe que lhe vai cair em cima.
Um contrato sem assinatura
Uns quilómetros a sul, em Lisboa, Bruno Vaz também fala por um membro da família: o avô.
Mas no caso deste engenheiro de 29 anos, a história começa mais longe, no Norte, no concelho de Vinhais. O avô Albano José Vaz, hoje com 81 anos, esteve emigrado 40 anos em França e, "no seu período de reforma, decidiu voltar às origens para gozar o resto dos seus dias".
Albano foi contactado no início de 2014 pelo seu gestor de conta em Chaves para renovar o seu depósito a prazo. Nunca as palavras "papel comercial" foram proferidas. "Viemos a constatar ao longo do tempo que, obviamente, o meu avô não aderiu a qualquer depósito a prazo, mas sim subscreveu este papel comercial sem o seu consentimento", acusa Bruno Vaz.
Disseram-lhe, na altura, que não podiam dar-lhe os documentos relativos à renovação porque havia "uma falha no sistema informático". "Passados dez dias, chega-lhe um papel que ele nem sequer chegou a assinar, um papel meramente indicativo do produto que estava a subscrever".
Os papéis continuam por assinar por parte do cliente. O gestor assinou e carimbou a sua parte, deu ordem de subscrição, mas nunca esperou pelo aval de Albano José Vaz, o que já leva o caso para o âmbito jurídico.
"Além disso", acrescenta Bruno, ao folhear os papéis que apresenta sobre a mesa da sala de jantar, "o meu avô é uma pessoa com 81 anos, com um nível de instrução mínimo, com muita dificuldade em ler, com problemas de saúde, e não consegue sequer ler estas letras minúsculas e todas estas cláusulas associadas".
No contrato de Albano José Vaz não consta a sua assinatura
Bruno fala num "golpe baixo" no avô, que "nunca foi investidor": "Chega ao seu país-natal com o dinheiro ganho em França e são-lhe retiradas as suas poupanças."
Sentado na sala da casa que o avô ajudou a arrendar, não esconde a admiração pelo homem que lhe pagou os estudos – "teve uma vida de sacrifício, privou-se de qualquer tipo de vida boémia para ter uma vida digna" – e sempre o apoiou na sua busca por melhores condições de vida. Por isso, dá a cara e o testemunho de uma história que espera que venha a ter um desfecho positivo.
"Desde há um ano para cá que não durmo descansado" António Ribeiro Nunes pode rever-se na história de Albano. O reformado de 68 anos fala a custo. Ainda lhe custa acreditar que possa ter comprometido tanto dinheiro, guardado à confiança num banco de que era cliente há 40 anos. "Fui levado talvez pelo aspecto religioso… Achei que se era 'Espírito Santo' podia confiar…", confessa.
Não quer ser entrevistado em casa porque já está cansado dos mexericos entre os vizinhos. Conta como foi abordado pela gestora de conta para subscrever um produto "muito bom, com capital e juros garantidos".
Mostra a resma de papéis que foi coleccionando desde Janeiro do ano passado: o contrato do papel comercial, que também nunca chegou a assinar; cartas do BES, seguidas de certas e extractos bancários do Novo Banco; cartas do Banco de Portugal, da CMVM; recortes de jornais – um sem-número de documentos que testemunham o árduo processo pelo qual tem passado.
Mostra o documento – sem qualquer assinatura, nem sequer do gestor – do papel comercial: "Diz: 'para todos os efeitos, conheço e aceito todas as condições da operação.' Mentira. Passei-me logo. 'Compreendo os riscos envolvidos': falso. 'Possuo todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida': não."
Emociona-se. "Era o dinheiro das minhas poupanças, dinheiro do meu sogro, do meu pai, nosso, de 56 anos de trabalho. Somos uma família prudente e poupada… Também havia aqui dinheiro da minha filha mais nova."
O produto foi subscrito pela mulher. O contrato de 28 páginas só foi apresentado depois da confirmação da ordem. Quando chegou a casa à noite, António começou a ler. E começou a ficar preocupado. Viu escrito "Rioforte" e começou a desconfiar. Ligou para a gestora. "Não quero isto".
A resposta: "Agora já não posso anular, mas isto vai correr bem. Isto é garantido, não tenha problemas".
António Ribeiro Nunes investiu as poupanças de três gerações da família
Atrás dos óculos escuros, o reformado esconde a vergonha. "Desde há um ano para cá que não durmo descansado. E a partir de 3 de Agosto fiquei muito preocupado mesmo. Acordo de noite, a minha mulher acorda de noite…"
Olha para trás, para os edifícios do hospital que se desenham ao fundo da rua. "Tenho aqui um psiquiatra em Santa Maria onde vou de vez em quando", confessa. Mas ganhou coragem para dar a cara pelos lesados do papel comercial quando percebeu que poucos iriam tomar essa atitude.
Bruno Vaz fala pelas inúmeras pessoas nesta situação: "A relação de confiança com o gestor era tão elevada e foi-lhes dada tanta segurança que as pessoas nem se deram ao trabalho de ler os contratos que lhes foram devolvidos", afirma. "Não tem qualquer qualificação no dicionário como é que estes senhores são capazes de cometer este tipo de acto".
"Um funcionário de um banco que está a dar a cara ao cliente, que está a vender um produto, tem de ter conhecimentos do que está a fazer!", atira António Ribeiro Nunes, que permanece na incredulidade, mesmo passados meses do ocorrido.
Curiosamente, o extracto bancário continua a apresentar o saldo como se o dinheiro lá estivesse disponível. E o cabeçalho diz "Novo Banco", apesar de o presidente, Eduardo Stock da Cunha, afirmar que o banco, a versão "boa" que saiu do processo de resolução do BES, não tem qualquer obrigação legal de reembolsar os clientes do papel comercial. Argumentação: os produtos subscritos pertenciam ao GES e não ao BES, mesmo tendo sido comprados aos balcões do Banco Espírito Santo.
Culpados com nome Em Rio Maior, Marta Lestro está longe de se interessar pelas minudências da questão. Para ela, a realidade é dura, e, sem dinheiro, tende a tornar-se ainda mais complicada. "É como se eu tivesse três filhos, com a consciência de que um deles nunca vai crescer."
"Imagine-se, daqui a 20 anos, como é que eu vou conseguir ter capacidade para isto tudo? Isso assusta-me um bocado. Mas o que me está a custar mais neste momento é ver uma pessoa honrada como o meu pai a sentir-se enganado. Mais do que roubado, ele sente-se enganado", diz.
O pai, no breve momento em que toca no assunto, só consegue dizer: "… ela [a gestora de conta] disse que era garantido".
Sem o dinheiro que "investiram", sem saber o que estavam efectivamente a fazer, o futuro fica mais nebuloso. "Já há muitos anos que sabia como seria o meu futuro. Nunca pensei que fosse tão difícil", diz Marta. Não consegue evitar emocionar-se, mas não interrompe por um segundo o seu testemunho.
Os culpados têm nomes, diz Marta. A raiva com as entidades reguladoras é generalizada. "Isto passou por baixo do nariz do Banco de Portugal", critica.
Slogan de campanha do Novo Banco não é bem recebido entre os clientes lesados. "Não consigo compreender como é que o Banco de Portugal, à data de Outubro de 2013, tinha presente as ilegalidades que existiam na venda a retalho do papel comercial, e não proibiu automaticamente essa venda. Aliás, nós fazemos parte de uma série que já foi emitida após a suspensão e na qual são englobadas pessoas que compraram após a data de 14 de Fevereiro. Isto é de uma gravidade atroz", declara a bióloga.
"Isto é claro. Houve uma burla. Os culpados estão identificados. Agora, ninguém quer resolver", afirma, por seu lado, Bruno Vaz.
Com a resma de correspondência entre mãos, António Ribeiro Nunes diz o mesmo. "Falei para o Novo Banco a reclamar, disseram-me que o assunto estava no Banco de Portugal. O Banco de Portugal respondeu que a competência é da CMVM e andaram ali a passar a bola. Já recebi 'n' cartas, fiz exposições para o Presidente da República, para a ministra das Finanças, para todas as entidades. Não resolvem nada."
"Todas estas entidades em que nós, cidadãos, devíamos ter confiança, estão a ter um comportamento infantil de passar responsabilidades uns para os outros. A clara sensação que temos é que estão todas envolvidas no mesmo jogo", acusa Bruno Vaz.
O silêncio dos responsáveis Marta, Bruno e António inscreveram-se na Associação dos Lesados do Novo Banco. Não obstante as tentativas da associação, da parte dos gestores de conta, o silêncio é quase absoluto.
No caso de Marta, a gerente do banco local "começou a apresentar algum desconforto" e foi a própria que sugeriu que a família procurasse apoio jurídico, marcando reuniões com a direcção regional para os pôr a par da situação corrente.
No decorrer desta reportagem, a
Renascença foi contactada pela direcção de comunicação do Novo Banco, que afirmou terem sido já prestados todos os esclarecimentos sobre o assunto. Questionado sobre se os gestores de conta sabiam que estavam a vender um mau produto, o Novo Banco remeteu para esclarecimentos que, até ao momento, não chegaram.
Quatro dos sindicatos bancários do país não formularam qualquer resposta. A
Renascença tentou ainda contactar directamente, por e-mail, vários gestores de conta do Novo Banco – também sem resposta.
A
Renascença obteve apenas o relato de um gestor, que não quis ser identificado, que se sentiu "manipulado" pelas chefias.
Uma solução? O "Expresso" avançou no sábado que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, quer apresentar-se na terça-feira, na comissão de inquérito ao caso BES/GES, já com uma solução para os clientes de retalho do BES que subscreveram papel comercial de entidades do GES.
Outras notícias detalharam pormenores da possível proposta, que prevê o reembolso através de um depósito a prazo, com o prazo máximo de dez anos. A Associação de Lesados do Novo Banco já reagiu: não vai aceitar perdas de capital.
Os clientes só vão acreditar numa resolução quando a virem por escrito. É que a história já vai longa, e as promessas goradas têm-se sucedido.