22 dez, 2015 - 17:12 • , Teresa Abecasis (imagem) e Catarina Santos (edição de imagem)
Veja também:
É preciso uma ciência “especial” para legitimar a medicina dita "não-convencional"? E um estatuto legal para enquadrar os profissionais que a exercem? O Bloco de Esquerda pensa que sim e quer que o Governo legisle sobre as licenciaturas em Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e os ciclos de estudos dos cursos de homeopatia.
Enquanto a resposta não chega, a Renascença convidou David Marçal, bioquímico, professor e autor do ensaio “Pseudociência” para debater com Duarte Ramada Curto, especialista em MTC, empreendedor social e sócio da clínica SUN.
Da conversa acesa que se seguiu, David Marçal discordou do enquadramento legal de qualquer terapêutica cuja validade cientifica não tenha sido ainda universalmente comprovada através de ensaios clínicos e comparou a emissão de cédulas profissionais a terapeutas “não-convencionais” à “Direcção-Geral de Veterinária emitir licenças para amestradores de dragões”.
Duarte Ramada Curto, por seu lado, defende a avaliação e regulamentação para todos os profissionais “alternativos” para evitar que surjam “clínicas em vãos de escadas” e afirma que não precisa de uma “ciência especial”: “ou resulta, ou não resulta.”
David Marçal, a medicina chinesa e a homeopatia devem ser submetidas a ensaios clínicos da mesma forma que são os outros medicamentos?
David Marçal (DM): Se queremos dizer que são baseadas na ciência, sim. Toda esta cavalgada legislativa que tem vindo a regulamentar, a legitimar e reforçar as terapias alternativas, especialmente a partir de 2013, é um disparate completo. Acaba por constituir um argumento de autoridade e equiparar práticas terapêuticas que não têm fundamento científico a outras às quais é exigido um elevado nível de prova.
Como é que sabemos que um tratamento funciona, do ponto de vista da ciência? Temos de fazer ensaios clínicos. Arranjamos dois grupos de pacientes. A um administramos o tratamento em teste, por exemplo, um comprimido, e a outro administramos um tratamento em tudo igual menos àquilo que se quer testar, neste caso, será o princípio activo. Mas isto não chega. Tem de ser feito às cegas, a divisão tem de ser aleatória, e os médicos não podem saber quais são os pacientes no grupo de teste e quais estão no grupo de controlo. Precisamos dos resultados para termos significados estatísticos. Imagine que eu agora até estava com um bocadinho de rinite. Aqui o Duarte espetava-me uma agulha na mão ou na testa e eu agora já estava bom. Eu podia atribuir estas melhoras ao tratamento médico que tinha recebido.
Duarte Ramada Curto (DRC): [Isso seria um tratamento] sintomático e não de raiz...
DM: Sim, mas na ciência, para atribuirmos uma causa a um determinado efeito, temos de excluir todas as outras causas possíveis. E, no final, temos que escolher um determinado patamar de qualidade metodológica. Não vale escolher só o que nos interessa: essa é uma estratégia habitual da pseudociência. Um ensaio clínico é como um postal ilustrado, mas temos de levar a paisagem toda em conta.
É curioso que fale da “paisagem toda”. Uma das maiores bandeiras das medicinas não-convencionais é dizer que estão a ver a paisagem toda e não só o sintoma.
DM: Se as medicinas alternativas argumentam que têm o fundamento científico e que conseguem o mesmo nível de prova, então não precisam de um estatuto especial. Que apresentem e que se sujeitem à validação dos seus tratamentos.
Não precisam de um estatuto especial, precisam de um estatuto, ponto. Se neste momento não existem cursos de MTC reconhecidos em Portugal, então estão a actuar quase à margem da lei, ou não?
DM: Não é o reconhecimento da licenciatura que lhe dá a validade científica. Existe uma universidade de medicina quântica no Havai que não tem validação nenhuma. Se as medicinas alternativas conseguem demonstrar a eficácia do tratamento de um modo estatisticamente superior ao placebo, então que se sujeitem à aprovação perante estes critérios.
E não se sujeitam?
DRC: O que tem acontecido na literatura científica sobre, por exemplo, a acupunctura, é haver médicos inexperientes, enfermeiros e fisioterapeutas que não conhecem a técnica verdadeira da acupunctura [a avaliar as práticas]. Isto é, como é que a acupunctura é feita nos ensaios clínicos, a que profundidade, que manipulação, que tipo de raciocínio: isto não acontece nos estudos científicos de acupunctura (que existem desde os anos 70). O método de fazer ciência em acupunctura leva a questionar se a acupunctura pode estar no mesmo crivo que a medicina moderna para a avaliação dos seus métodos.
DM: O que o Duarte está a dizer é que precisa de uma ciência especial para validar a acupunctura.
DRC: Não é verdade. Estou a dizer que o que tem acontecido é que os estudos científicos que são feitos, neste caso, em acupunctura, não são válidos por causa do método que é utilizado no próprio estudo. Não é preciso uma ciência especial: ou resulta, ou não resulta.
Existem, no que toca por exemplo à saúde da mulher grávida, alguns resultados comprovados na viragem do bebé no último trimestre de gestação. A MTC tem actuado muito no Ocidente para fazer com que o bebé vire dentro da barriga para depois evitar o “stress” durante o parto e mitigar os perigos para a mãe e o bebé. Isto configurará uma ideia de progresso ou de retrocesso?
DRC: Já aconteceu com dezenas de pacientes minhas. Não estou a induzir um placebo, não estou a induzir em erro as mulheres e os casais que vêm ter comigo. Isto é feito há milhares de anos porque a fertilidade e o estado da grávida e do filho são coisas muito queridas na família chinesa. É uma técnica. Dentro da MTC, existem várias áreas de actuação: a acupunctura, a massagem, a fitoterapia e a aplicação de calor térmico (chamado “moxabustão”). Esta técnica faz-se com a aplicação de calor térmico num ponto de acupunctura exactamente entre as 29 e as 32 semanas nas mulheres que têm esse problema e em que a solução apresentada [pela medicina chamada convencional] acaba por ser a cesariana, diversos tipos de massagens e manipulações, ou a administração de alguns químicos para o bebé rodar.
Duarte, imagine que faz esse tratamento todo e o bebé não vira. Como é que fica o resultado?
DRC: Aí não ponho em questão o que estive a fazer; existem outras alternativas, como a cesariana. Por que é que faço essa técnica? Porque a literatura científica com 2.500 anos [a apresenta]. O tratamento empírico desse tipo de situação tem construído esse tipo de conhecimento. Que é válido, eu acho.
Uma mulher vai ao SNS e não tem o mesmo tempo ou acompanhamento que poderá ter se for gastar o seu dinheiro na medicina chinesa ou numa clínica da CUF. Na perspectiva da saúde pública, a escolha do paciente pode ter a ver com o tempo que os praticantes de medicina têm ou não para dispensar?
DM: Isso é uma crítica que se pode fazer à medicina convencional. É uma coisa que o sistema de saúde tem de reflectir e explica um dos motivos pelos quais as pessoas procuram muito as medicinas alternativas. Sentem-se acolhidas, sentem que têm mais atenção e esse lado do acolhimento humano e pessoal, podemos reconhecer, não tem sido muito valorizado na medicina convencional. Quanto aos bebés a virarem na barriga, o ideal, quando há uma mãe com um bebé que não está na posição certa, é que ele vire. Mas então diz-se que é um tratamento tradicional, uma coisa antiga, e não se alega que tem uma validade científica.
Mas não levava lá a sua mulher?
DM: Se houvesse ensaios clínicos bem concebidos que mostrassem a eficácia e segurança desse tratamento, levaria.
DRC: Mas numa grávida, o tempo escasseia. Para cada caso tem de se fazer um ensaio clínico.
DM: Como seres humanos não somos assim tão diferentes, não temos de fazer um ensaio para cada um. São estudos estatísticos.
Mas enquanto a estatística se está a actualizar, o que é que acontece às pessoas que precisam da ciência agora?
DM: O que acontece é que os médicos tomam decisões com base nos estudos que já foram feitos.
DRC: E no empirismo. Que é o que tem acontecido na China.
DM: O empirismo? Sim...
DRC: O que resultava era escrito e registado, o que não resultava não era escrito nem registado.
DM: Muito bem. O empirismo, é verdade, pode ter alguns resultados. Graças ao empirismo sabemos que certas plantas têm um efeito analgésico, como o extracto de salgueiro. É um patamar de conhecimento, mas continua a não ser conhecimento científico. A medicina tradicional chinesa pode acertar em alguns casos. Soube que em Portugal, na prática tradicional, se punha por vezes bolor do pão nas feridas. Eu estou convencido de que as pessoas não sabiam o que era um antibiótico, mas empiricamente acabaram por descobrir...
DRC: A penicilina.
DM: Possivelmente. Há conhecimentos de medicina tradicional que podem vir a adquirir prova da sua eficácia, e nesse caso passam a ser medicina de pleno direito.
Um português médio, que tem um salário médio, como é que decide entre medicina convencional ou alternativa?
DM: É importante que tome decisões informadas e que saiba se na realidade os tratamentos que escolhe têm um fundamento científico ou não. As pessoas são livres de os escolher mesmo que não os tenham.
Quando as pessoas tomam decisões relativas à sua saúde - vida e morte, no limite - não as tomam só com base em conhecimento científico, tomam decisões afectivas, pessoais, e muitas vezes irracionais. Alguém que queira “comprar” o melhor tratamento se calhar não o pode fazer e tem de recorrer ao SNS. Por que é que será importante o Estado meter-se nesta conversa?
DRC: Existem diversos profissionais e diversos cursos com currículos variados. O primeiro interesse na regulamentação é dos terapeutas e há muitos que não querem que avance, porque têm fraca formação científica, pessoal, comercial e ética. Abrem consultórios em vãos de escada, sem as mínimas condições de higiene e segurança para a sua prática; têm cursos de fim-de-semana e de 200 horas.
Mas como é que o paciente distingue entre um vendedor de banha da cobra e um especialista?
DRC: O Estado interveio em 2001 e percebeu que isto tem de ser regulamentado porque os dois milhões ou mais de pacientes que já estão a recorrer a estas terapias querem saber onde podem ir e quem é que têm à frente. As escolas que existem têm de se adaptar a este crivo de formação. Ainda não saíram (legalmente) os planos de estudos da MTC e da homeopatia, mas espero que saiam em breve. Os profissionais que existem estão a ser e têm de ser avaliados.
David Marçal, o que pensa sobre o papel do Estado nesta matéria?
DM: Que sentido é que faz o Estado passar cédulas profissionais a certas pessoas que exercem uma medicina que não funciona, como a homeopatia? São simplesmente comprimidos de açúcar que não funcionam melhor do que um placebo. É como a Direcção-Geral de Veterinária emitir licenças para amestradores de dragões. E dizer que há pessoas que podem amestrar dragões e outras que não. A regulamentação vai dividir as instituições em dois tipos: aquelas que aceitam e que se sujeitam fazer licenciaturas em poderes dos Pokémon, e aquelas que são mesmo de ensino superior a sério.
DRC: O meu ''sound bite'' acaba por se concentrar nisto: os profissionais têm de ser regulamentados; os que existem tem de ser avaliados e tem que se perceber em que condições podem praticar. Não é tão cómico nem humorístico, mas é mais sério.