23 fev, 2016 - 08:45
O antigo primeiro-ministro socialista António Guterres elogia o que entende por criatividade no acordo de governo feito em Portugal, à esquerda. Num debate com o também antigo chefe de Governo Durão Barroso (PSD), Guterres defendeu a importância de tudo correr bem.
“O mais importante num momento como este, independentemente da fórmula governativa que existe, é que todos procuremos que as coisas corram bem; que as políticas aplicadas tenham êxito e que o país ultrapasse as dificuldades que tem, porque as pessoas têm sofrido muito em Portugal”, afirmou na segunda-feira à noite.
“É importante que as coisas corram bem e que os portugueses ajudem. Devo dizer que, no acordo político que foi feito, houve um aspecto que eu acho muito criativo, que foi o facto de os partidos políticos que apoiam o governo minoritário terem aceitado que esse governo mantivesse uma posição de fidelidade em relação aos compromissos europeus e atlânticos de Portugal”, considerou.
Opinião diferente manifestou o social-democrata e antigo presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. “Acho que, na situação em que o país está, foi um erro a fórmula governativa seguida”.
“O que há em Portugal hoje em dia é um Governo minoritário, mas que está apoiado no Parlamento por forças que são contra o consenso europeu, contra a NATO, contra a Organização Mundial do Comércio, como é o Bloco de Esquerda que tem isso no seu programa”, justificou, sublinhando que considera “importante que o país não voltasse atrás. Custou muito sair da situação que tínhamos de programa de ajustamento e espero e desejo que o país não volte atrás”.
Os dois antigos dirigentes de instituições internacionais participaram no debate promovido pela Fundação Manuel António dos Santos e pela RTP. Do panorama político nacional, a conversa passou além-fronteiras, centrando-se no conflito na Síria, na crise migratória e na ONU.
Reformar as Nações Unidas
O candidato português a secretário-geral da ONU considera que as estruturas da organização precisam de uma reforma.
“Hoje, 60 anos depois, temos praticamente as mesmas Nações Unidas que foram criadas naquela altura, como temos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi feito naquela altura, como temos a Declaração de 1951, que regula os refugiados”, afirmou António Guterres.
“Sinceramente, penso que, no mundo de hoje – não porque haja uma terceira guerra mundial, mas por causa das transformações enormes que sofreu – [a organização] precisaria de uma capacidade inovadora semelhante à que existiu no pós-guerra e de uma modernização das estruturas que globalmente nos regem. Não é fácil”, admite.
Guterres admite, por outro lado, que “se elaborássemos hoje, à escala global, uma Declaração Universal dos Direitos do Homem, arriscávamos ter documentos menos progressistas do que aqueles que temos”.
Durão Barroso, por seu lado, reconhecendo que o cargo de secretário-geral “é uma das funções mais importantes ao nível mundial”, quem realmente manda nas Nações Unidas “é o Conselho de Segurança e quem manda no Conselho de Segurança são os membros permanentes, nomeadamente as grandes potências”.
O antigo presidente da Comissão Europeia considera, portanto, só um secretário-geral “intelectualmente brilhante pode conseguir uma certa margem de autonomia e iniciativa” dentro da organização.
“As Nações Unidas são também aquilo que os países e os governos que lá estão querem que ela seja. Não pode haver milagres, não é um secretário-geral que pode transformar tudo”, rematou.
Síria: a emergência da Rússia
“O essencial é que Estados Unidos da América e Rússia e, por outro lado, Arábia Saudita e Irão se entendam” para que se possa resolver o conflito na Síria, defende Durão Barroso.
O antigo chefe dos comissários europeus considera que estas potências estão a “trabalhar um pouco à sombra dos apoios que recebem”, o que só perpectua a crise.
“A situação hoje no Médio Oriente é muito pior do que era há alguns anos e isso tem muito a ver com o conflito Irão/Arábia Saudita. E agora a Rússia, que estava até há pouco tempo numa posição mais afastada, está a querer mostrar outra vez o seu poder e a sua força e está com uma agenda própria bem clara na Síria. Ao mesmo tempo que o Ocidente não tinha nem tem uma verdadeira política, esta é que é a verdade”, critica.
António Guterres sublinhou, por seu lado, a falsa interpretação do Islão na expansão do terrorismo.
“É muito interessante ler os textos, nomeadamente o Alcorão, porque normalmente, quando aparecem as frases utilizadas por estes grupos terroristas, para justificar alguns dos seus actos, têm a ver com circunstâncias muito específicas”, e “as citações que usam são sempre completamente retiradas de contexto”, afirma.
Se a Europa se unisse…
Como antigo alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Guterres falou do “défice de solidariedade terrível entre os Estados-membros europeus” no que diz respeito à crise migratória.
“Estamos a falar de duas pessoas [migrantes] por cada mil cidadãos da União no ano passado, quando no Líbano há um refugiado por cada três libaneses. A Europa, se estivesse unida no sentido de os Estados colaborarem uns com os outros e com as instituições, para darem uma resposta a este desafio, não teria a situação caótica que tem neste momento”, defendeu.
Ainda assim, António Guterres não considera que se esteja a ditar o fim da União Europeia. “Até agora, a experiência revela que quando há uma questão verdadeiramente difícil no último momento ela é resolvida”, rematou.