02 jun, 2016 - 06:00 • Henrique Cunha
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Portugal está a falhar com os seus idosos e na forma como aborda os problemas do envelhecimento, acusa o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, em entrevista à Renascença.
Em vez de pensar separadamente em pensões, envelhecimento activo, demências, dependências, lares, centros de dia ou apoio domiciliário, Manuel Lemos defende que é preciso encarar a questão de “forma integrada”.
Nenhum dos últimos governos escapa. O presidente da União das Misericórdias é muito crítico em relação ao não cumprimento da lei da economia social, denunciando, por exemplo, o facto muito idosos não terem apoio domiciliário ao fim-de-semana.
A questão do envelhecimento vai estar em destaque no 12.º congresso da União das Misericórdias, que começa esta quinta-feira, no Fundão.
Num país demograficamente inclinado para uma faixa etária mais elevada, foi isso que levou a União das Misericórdias a dar uma particular atenção à questão do envelhecimento?
Sim, tradicionalmente nos últimos 40 anos, as Misericórdias orientaram-se preferencialmente para estudar a sério e trabalhar com pessoas idosas. Esses últimos 40 anos e particularmente depois nos últimos 16 anos para situar no início do século XXI o tema do envelhecimento tem sido um tema que tem ganho uma dimensão muito particular na sociedade portuguesa.
Que nem sempre tem sido bem tratado...
Nem sempre tem sido bem tratado, isto é, há muito boa vontade em tratar o tema, mas tem-se olhado para o problema do envelhecimento de uma forma não articulada, isto é, às fatias. Agora vamos tratar das pensões, depois vamos tratar do envelhecimento activo, depois vamos tratar das demências, depois vamos tratar das dependências, depois vamos tratar dos lares, depois dos centros de dia, depois do apoio domiciliário.
Falta uma política articulada?
Ora bem, tudo isto que é feito pelos diferentes governos, não se pode aqui dizer que um é melhor que o outro, tem sido feito como se fosse possível cortar o problema do envelhecimento e os próprios idosos às fatias. E nós próprios também, por vezes, temos colaborado com esse olhar porque a pressão do dia-a-dia é grande. Portugal hoje é um país com uma taxa de envelhecimento maior na Europa e, sobretudo, um dos que envelhece mais depressa. Já não há propriamente uma pirâmide etária. É fundamental que olhemos para o envelhecimento de uma forma integrada e como as Misericórdias se assumem sempre como parceiras do Estado e, de alguma maneira, o Estado tem-nos confiado e tem respeitado o nosso "know how" nesta matéria, nós entendemos que valeria a pena reflectir sobre isto, desta forma integrada, pedir o apoio de muitas personalidades que você vê no programa que são quase todas ligadas à universidade.
Ao fenómeno estão associados alguns problemas muito graves, como é a questão dos maus-tratos a idosos, a emergência de lares clandestinos. Como é que se combatem estes fenómenos?
A primeira coisa que é a mais fácil de dizer e a mais difícil de fazer é articulando as respostas todas. É muito fácil dizer "vamos articular" e depois isso bate nos pequenos poderes, na razoabilidade económica, às vezes até na razoabilidade ideológica, na dificuldade natural de articulação entre os diferentes serviços que promovem as políticas públicas e nos próprios que operamos no terreno. Porque é que pululam lares ilegais? Porque o número de pessoas que precisa absolutamente de um local para estar é maior do que a resposta da cooperação do sistema privado, porque cuidar bem de um idoso custa caro.
E às vezes isto decorre do abandono dos idosos. É um fenómeno que tem aumentado?
Tudo isso está ligado. Por isso é que eu digo que não podemos cortar às fatias. Eu acho que há dois fenómenos aqui: há um fenómeno rural e um fenómeno urbano. O abandono dos idosos em meio rural quer dizer que os mais novos foram-se embora. Há desertificação, portanto, os idosos ficaram sozinhos. É necessário criar pólos de fixação de gente nova, gente que quer emprego, que quer trabalhar.
Depois temos o abandono urbano que é muito mais dramático, porque o abandono em meio rural a pessoa ainda está no seu meio ambiente.
Eu sou um feroz defensor do apoio domiciliário, acho que não podemos transformar o nosso país num imenso lar, mas vou dar um exemplo que nos dias que correm é incompreensível e algumas pessoas que não sabem isso são capazes de ficar um bocado chocados. Ainda hoje, em 2016, grande parte do apoio domiciliário fornecido pelas instituições particulares de solidariedade social (IPSS) só abrange cinco dias por semana, não abrange sábado e domingo, como se um idoso frágil não precisasse de ser limpo, ter outros cuidados de higiene e não comesse aos fins-de-semana.
Quem é responsável por isso?
Em alguns casos os acordos. As dificuldades económicas têm limitado os centros distritais de Segurança Social de fazer esse tipo de acordos.
Há que aproveitar este momento do congresso, com a presença de muitos políticos e em particular de membros do Governo para se rever estas matérias?
Nós falamos sempre isso. Não é uma novidade nem vamos acusar disse este Governo que acabou de chegar, de maneira nenhuma. Estamos a falar de uma realidade que todos nós, os técnicos desta matéria, sabemos. Isto é um problema que tem 10, 12 anos e é verdade que hoje há muitos mais casos de apoio domiciliário de sete dias por semana do que com cinco. É verdade, mas depois há as famosas limitações financeiras e ficamos todos aqui num médio passo. Quando as limitações financeiras estão a tratar, eventualmente, o futuro, estes idosos já perderam o seu presente porque não há futuro para eles, ou o futuro é muito breve. Este tipo de respostas cria empregos sustentados e sustentáveis.
Ainda não estamos a dar a devida importância à economia social?
Claramente que não. Portugal é hoje um país muito marginal em termos da importância que os políticos atribuem à economia social. É muito bom falar nisso, há “n” resoluções do Conselho da Europa a recomendar aos países membros que protejam e desenvolvam a economia social. Os políticos têm pouca memória, mas eu acho que está na altura de começarmos a levantar a memória ao espelho.
Portugal tem não um decreto-lei, mas uma lei de economia social votada na Assembleia da República, por unanimidade. É uma das poucas leis, provavelmente a única, que foi votada na Assembleia da República por unanimidade em 40 anos de democracia. O que mostra como é que é politicamente correcto falar da economia social e votar a economia social e depois? E depois na sua regulamentação? E depois na prática? E depois tirar as instituições da economia social do terreno e falar na dicotomia pública ou privada, os negócios, idealizar a ideia de negócio porque é uma ideia virtuosa da humanidade, mas no caso...
A lei tem contacto com a realidade?
Na economia social não há lucros, deve haver resultados positivos do exercício e esses são reintegrados a 100% na actividade ao contrário, muito natural e muito legitimamente, como faz o sector privado.
Então o que falta fazer para implementar devidamente a lei?
Falta assumir a importância da economia social verdadeiramente como um desígnio nacional.
Ainda a este nível da questão dos idosos as Misericórdias têm um trabalho reconhecido ao nível dos cuidados continuados e cuidados paliativos...
Os cuidados paliativos neste plano representam um bom exemplo do que é a articulação. É óbvio que nunca estamos satisfeitos e podemos fazer muito melhor, mas a circunstância do sector, da rede de cuidados continuados é em si mesmo um exemplo virtuoso do que pode ser a articulação. Podemos dizer que há poucas unidades de cuidados continuados e há poucas unidades de cuidados continuados.
E as misericórdias podem investir a esse nível?
O problema das Misericórdias é que nós só podemos investir num quadro de estabilidade. Só as Misericórdias têm mais de 50% da rede neste momento. O que é que digo? É velho como o mundo, gato escaldado de água fria tem medo. Vamos lá ver, há seis anos que os cuidados continuados não são ajustados, há seis…
Neste momento, existe um clima de desconfiança entre as Misericórdias, o sector social e o Estado?
Eu não diria que é um clima de desconfiança, não ponho isso nesse pé em relação à rede de cuidados continuados de maneira nenhuma, ponho isso em sede de preocupação.
Mas é uma preocupação que se estende também à questão da reversão de devolução de hospitais às Misericórdias, que tinha sido encetada pelo anterior Governo?
É mais uma vez o andar para a frente e o andar para trás.
Essa é uma questão fechada?
Não sei. Em Portugal não há nada que seja fechado nem nada que seja aberto, completamente aberto.
Mas o Governo decidiu manter os hospitais e anunciou um estudo para ver se era melhor ficar com eles ou não.
A mim parece-me que seja feita pela Administração Central do Sistema de Saúde ou pela Entidade Reguladora da Saúde, é um estudo que é interessante fazer-se. A sensação que eu tenho é que ninguém põe o problema em termos económicos, em termos de benefícios para as populações. Acho que esse é facilmente demonstrável que as populações beneficiam e que o Estado poupa dinheiro. Estamos noutro plano que é um plano ideológico.
Seja qual for o resultado desses estudos, a decisão está tomada por uma razão ideológica?
Eu diria que por uma questão que alguns partidos que votaram favoravelmente a lei da economia social, que reconhecem que o Estado nos reconhece a utilidade pública, felizmente e muito bem, eu acho que temos que separar e estamos a separar e o senhor primeiro-ministro está a fazer isso de uma forma muito clara e muito evidente a separação entre o que é a política e depois a gestão do Estado, que cabe ao partido que está a gerir o Estado. Nessa matéria, penso que aí as coisas estão a correr de uma forma correcta.
Que outras preocupações tem o sector terciário tem nesta altura e que vão discutir neste congresso?
O nosso problema central é, de facto, este problema do envelhecimento, porque as quase 400 Misericórdias, se não são todas, são para aí 390 e só duas ou três têm actividades com idosos. Não somos o único, mas nós somos um parceiro confiável e há neste Governo, a começar no senhor primeiro-ministro… Eu recordo que quando ele aqui há uns anos era presidente da Câmara de Lisboa e me pediu se nós, Misericórdias, o ajudávamos a fazer uma rede de creches, porque havia um problema de creches em Lisboa, programa BABA.
A actividade das Misericórdias é transversal a toda a sociedade, receia que problemas idênticos ao dos contratos de associação possam vir a ser reflectidos por exemplo ao nível das creches?
Confesso que não sei, mas era capaz de não ser muito boa ideia. Para mim, em matéria de cooperação, não faz sentido nenhum se temos ali uma unidade seja pública, social ou privada. Porque é que o Estado há-de ir gastar dinheiro para fazer ao lado uma coisa igual? Porquê? Da mesma maneira que não faz sentido nenhum que ao lado de um equipamento do Estado, um privado ou um social faça uma resposta idêntica e depois venha pedir um contrato qualquer.
Há uma coisa que o Estado tem que melhorar seguramente nessa matéria: é ter respostas de qualidade. Tudo o que se fizer, quer de um lado quer de outro, tem que ter qualidade. Agora, é óbvio que visto isso, acho que o estado tem liberdade para denunciar os acordos.
O Ministério da Educação já deu o assunto como encerrado.
Então, está encerrado. Mais uma vez, acho que estas coisas estão só relativamente encerradas.
A candidatura da Misericórdia a Património Imaterial da Humanidade vai mesmo avançar?
Claro que vai. Chamar a atenção para valores que são valores da humanidade, da nossa civilização e da nossa cultura e transformar isso em património da humanidade, penso que é alguma coisa de extremamente importante.