23 nov, 2016 - 15:58 • Sérgio Costa
O presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca, sublinha que "a crise ainda não passou" e destaca, entre problemas de sempre, que se agrava o da precariedade no trabalho e também o facto de se registar um aumento da pobreza infantil..
Neste quadro, o documento divulgado esta quarta-feira pela Cáritas Europa aponta, na perspectiva de Eugénio da Fonseca, linhas adequadas à realidade portuguesa, ao propor um mercado de trabalho inclusivo e mais protecção social.
"Esse argumento de que só é pobre quem quer, por favor, não se utilize mais, porque há milhares de portugueses que trabalham por conta de outrem e estão a viver na condição de pobreza", lembra.
"Não acredito que, com um salário mínimo baixo, se possa criar mais emprego", diz ainda o presidente da Cáritas, para quem é urgente "proteger todos os direitos dos trabalhadores", para que haja "trabalho, mas digno".
O que traz de novo este documento da Cáritas Europa?
Temos que olhar para este documento com um olhar diferente, porque, se olharmos com a mesma visão sobre a pobreza que tivemos até agora, há, com certeza, medidas que poderão não fazer sentido.
Na família, pede-se que haja um subsídio mensal para as crianças e a adopção universal desse subsídio, privilegiando sempre - e a isto chama-se diferenciação positiva - as famílias com rendimentos mais baixos. Porquê? Porque nós estamos a assistir, na Europa e, particularmente, em Portugal, ao aumento da pobreza infantil. Tínhamos uma taxa de pobreza dos 25% a 27%. Agora, vem o Eurostat dizer que já vamos nos 29,6% e nas famílias em que os pais têm pouca formação escolar chegamos aos 45,6%.
O cenário está, então, a piorar?
No âmbito da família, a Cáritas quer que os equipamentos de acolhimento de crianças sejam adequados à realidade das próprias crianças, isto é, com alguma maleabilidade.Também se fala na conciliação dos horários de trabalho com a vida familiar. Depois, há serviços de aconselhamento familiares, que já vão aparecendo. Por exemplo, aqui no patriarcado de Lisboa, existe um que é feito em parceira com a pastoral familiar e a Cáritas diocesana.
[O documento] aponta também para o trabalho que se deve ter em termos de atenção à família, reconhecendo o trabalho que o documento chama de "cuidar da família”, que nós designamos por "trabalho doméstico". Portanto, o documento aponta para essa necessidade, alargando, até, os períodos de assistência à família. Como sabemos, há essa possibilidade de o pai ou a mãe ficarem de assistência à família não perdendo as regalias e os direitos que têm como trabalhadores, mas, a partir de determinada idade, a pessoa que necessita já não tem a possibilidade de ter o cuidador.
Quais são as grandes novidades, as grandes sugestões da Cáritas para os próximos tempos?
Não é uma novidade, mas uma vem logo à cabeça das recomendações: proteger todos os direitos dos trabalhadores. No fim, pede-se "trabalho, mas digno" e combate a todas as formas de exploração. Tem que haver mecanismos de acompanhamento que não se podem confinar apenas às autoridades de fiscalização de trabalho. Tem que haver uma co-responsabilidade e, por isso, é muito importante formar os nossos empresários. Também que formar os empresários em várias áreas.
Há questões éticas que têm que ser valorizadas. Uma questão que está na ordem do dia em Portugal é a do salário mínimo. O salário mínimo tem de ser adequado. Em Portugal, estamos a verificar o agravamento de uma realidade, que é a dos trabalhadores pobres. Esse argumento de que só é pobre quem quer, por favor, não se utilize mais, porque há milhares de portugueses que trabalham por conta de outrem e estão a viver na condição de pobreza. Continuaram a ser pobres, não saíram da situação de pobreza. A questão dos contratos a curto prazo é uma vergonha e o que muitas vezes acontece não só são os contratos de reduzido tempo como, às vezes, as pessoas têm que levar para o emprego os instrumentos que lhe servem de produção.
Muitos empresários justificam estes contratos de curta duração como a única forma que têm de empregar...
Não consigo perceber, porque eu acho que se produz mais quando se cria relações entre colegas, com os próprios empregadores, porque o trabalho não é só aquilo que se faz. É aquilo que também se consegue ser no ambiente de trabalho, e não é em três ou quatro semanas que isso acontece.
Aquilo que aconteceu à minha geração e na geração anterior foi ter um trabalho para toda a vida. Posso aceitar que hoje não seja assim, mas não posso aceitar que haja pessoas que tenham uma vida activa sem trabalho. Mas também não é com contratos de três ou quatro semanas que uma pessoa se realiza, porque de cada vez que a pessoa recebe um documento a dizer "cessou o seu contrato" não fica só com a preocupação do dinheiro que vai faltar, fica também com a sensação ainda muito mais dolorosa que é sentir "eu não presto, eu não valho".
Nós, na Cáritas, estamos a tentar lançar os clubes de emprego, que não garantem a certeza de se encontrar um trabalho, mas geram uma dinâmica que vamos experimentar em algumas paróquias e entidades de proximidade que queiram pôr os desempregados a falar uns com os outros e, depois, irem dois a dois à procura de trabalho, porque se estimulam um ao outro.
Quanto à protecção social...
Eu realço uma sugestão do documento que é fundamental. Estamos a falar de algo que tem tudo a ver com os direitos humanos, não estamos a falar de privilégios, de concessões discriminatórias. Isto tem que assentar nos direitos humanos. e, por isso, o que este documento pede é que haja uma cobertura nacional, abrangente que procure cobrir todas as necessidades vitais. Para isto, tem que haver um mecanismo de acompanhamento, de muita proximidade. Há que haver uma política, uma estratégia de valorização dos grupos de vizinhança. Temos que, e aqui a igreja tem possibilidades muito fortes de fazer isso, estar atentos às necessidades, porque, muitas vezes, as respostas aparecem de acordo com os financiamentos existentes. Temos agora uma agenda 2020 que privilegiou determinadas áreas de acção e só financia isso. E, então, vai toda a gente fazer isso, porque para isso há dinheiro e esquecem-se outras que que se tornam em fenómenos que já não somos capazes de resolver com a eficácia desejada. Este acesso universal àquilo que são os seus direitos é muito importante.
Que avaliação faz da inércia, do ponto de vista político, dos organismos europeus, tendo em conta que os países não têm cumprido o objectivo definido pelo presidente da Comissão Europeia na criação de trabalho?
Toda a gente se compromete com tudo e, depois, ninguém assume as responsabilidades e os compromissos. Esse deveriam ser penalizados, como muitas vezes o cidadão é. Os estados não são. Nestes campos, estamos já cansados das boas vontades. Ninguém é capaz de dizer que não está de acordo com os acordos, mas ninguém, depois, na prática, assume aquilo que, teoricamente, em termos propositivos, rege. Também há grupos de pressão que não deixam, muitas vezes, que isso aconteça, porque a política passou a ser dominada pelo capital e isto é uma realidade que temos que assumir.
O Santo Padre tem falado muitas vezes disto. A doutrina social da igreja está cheia destas recomendações. O Estado social é, sem dúvida, imprescindível. No nosso país, se não houvesse esta dimensão social nas responsabilidades do Estado, em vez de termos perto de 20% de pobres teríamos entre 45% a 49% de gente pobre. Ninguém pode pôr em causa o Estado social e o seu fortalecimento depende, mais uma vez, da redistribuição equitativa dos rendimentos existentes
Como é que avalia a situação do país? Como é que nos pode descrever aquilo que a Cáritas vê em Portugal?
A crise ainda não passou. Com certeza que irá passar. Mais depressa para uns, levará mais tempo para outros, porque isto está relacionado com a autonomia de rendimentos.
Nós, na Cáritas, em período homólogo relativamente a 2015, acompanhamos mais 30 mil famílias, o que representa mais 27%. As causas são as mesmas e com outro problema acrescido: a precariedade no trabalho não diminuiu. Efectivamente, criou-se um clima de maior optimismo, mas sabemos que o que existe é muito instável. Acho que o optimismo é muito importante para manter as sinergias das pessoa,s para a ultrapassagem deste tempo, porque numa depressão colectiva, como se vivia, também não se vai muito longe, porque já ninguém acredita em ninguém e, quando não se acredita, vai-se procurar salvadores à última da hora.
Os políticos desacreditaram-se e, agora, vence o populismo, vence o ridículo, muitas vezes.
Eu acho que se deve dar sinais positivos se eles corresponderem efectivamente à realidade, mas nós temos que perceber que a nossa economia é excessivamente dependente do comércio externo e, sempre que há problema noutro país, o problema vem cá para dentro.
A Europa deixou de ser União Europeia e devia fazer-se uma reflexão muito séria de para onde quer ir, porque a União deixou de trilhar o caminho dos seus fundadores.
Salário mínimo... Que mensagem deixa sobre este ponto, que volta à primeira linha da actualidade?
Eu acho que a concertação social é o espaço do diálogo das forças que na sociedade devem olhar no mesmo sentido, que é o do bem comum. Eu não acredito que, tendo um salário mínimo baixo, se possa criar mais emprego, porque isso já aconteceu em muitos sectores em que se baixou o IVA e nada aconteceu, em termos de alteração de preços dos serviços prestados nem do emprego criado.
Eu não sei as condições de quem se disponibiliza para aceitar aquilo que o Governo propõe, mas que sejam condições que partam do princípio da dignidade do trabalho que oferecem e também de compensações que dêem para que as pessoas não continuem a viver em condições de pobreza sem ter acesso àquilo que é o mínimo indispensável.