05 jan, 2017 - 06:30 • Raquel Abecasis
Todos os instruendos do 127.º curso de Comandos, no qual morreram dois soldados, garantem ter ingerido no máximo três cantis de água e não os cinco estabelecidos no guião. A informação foi apurada pela Renascença através da consulta dos depoimentos prestados à Polícia Judiciária Militar (PJM) por todos os intervenientes no curso.
Ao contrário do que está estabelecido no guião utilizado na prova – e que consta do processo judicial que averigua as mortes dos soldados Hugo Abreu e Dylan Silva – todos os instruendos do curso garantem ter ingerido no máximo três cantis de água em vez dos cinco estabelecidos no guião.
Nos seus testemunhos, os candidatos a comandos referem enormes restrições no acesso à água, identificando a prova de tiro, que se terá realizado por volta das 11h00, como o momento em que a maioria dos instruendos começou a fraquejar e a dar sinais de perda de noção da realidade.
Até à prova de tiro, estes instruendos já tinham passado por uma longa noite em que se deslocaram para Alcochete e prepararam o acampamento para a prova. Terão dormido cerca de duas horas, antes de uma manhã tórrida em que realizaram inúmeras provas de treino físico e psicológico, tendo apenas bebido algumas tampas de cantil. No máximo, os instruendos referem a ingestão de cerca de meio litro de água até à prova de tiro.
Na descrição dos factos ocorridos a 4 de Setembro de 2016, dia em que se registaram temperaturas na ordem dos 40 graus, são muitos os testemunhos que descrevem soldados desmaiados durante períodos prolongados à torreira do sol sem assistência médica, instruendos com alucinações e outros já completamente fragilizados obrigados a continuar o treino.
“Quanto ao Soldado Costa, este só foi assistido depois do carrossel [um exercício em que os instruendos são levados ao limite das suas forças físicas antes de serem conduzidos para uma simulação de combate], acrescenta que sabe que ele não almoçou, nem bebeu água, teve que ser levado em braços para a formatura depois do almoço com os pés de rojo, ele não conseguia estar de pé”, lê-se na transcrição de um depoimento.
Num outro testemunho, um dos instruendos diz estar “revoltado pois, na comunicação social, o Exército vinculou que eles tinham bebido sete litros de água o que é completamente falso. Refere ainda que a urina à tarde já estava castanha e que tinha camaradas a urinar sangue.”
Uma prova, dois guiões
A prova zero (a principal prova de resistência dos Comandos), que se iniciou em Setembro, decorreu oficialmente no cumprimento de um guião que os instrutores seguiram e que deixava claro que os instruendos deveriam ingerir no mínimo cinco cantis de água, devendo os instrutores ponderar o aumento desta dose caso as condições atmosféricas o justificassem.
Existe, no entanto, um outro guião, que data de Abril de 2016, que é muito mais restritivo no racionamento da água. Fala em três cantis e não deixa margem de manobra para aumentar a quantidade de água.
Várias fontes do curso 127 dos Comandos referem à Renascença que era este o guião que efectivamente estava a ser seguido. O Exército tem afirmado sempre que o guião certo é o que fala em cinco cantis.
Todos os instruendos inquiridos pela PJM garantem que a água que beberam corresponde no máximo a três cantis e há mesmo um instrutor do curso que refere no seu depoimento que “tinham combinado dar quatro cantis no primeiro dia e à hora do almoço aumentar para cinco cantis”. A esta hora, já grande parte dos instruendos se encontrava em avançado estado de desidratação e muitos deles na enfermaria.
Prova zero voltou em 2015
A prova zero foi reabilitada para o curso de Comandos em 2015. Tinha desaparecido do curso quando em 2002 se decidiu manter esta tropa especial, após uma interrupção que durava desde 1993 – período em que se ponderou a extinção dos Comandos, depois da morte de três candidatos a esta força militar durante a preparação.
Quando o curso de Comandos foi reiniciado, ficou claro que os tempos tinham mudado e que a preparação para teatros de guerra, como tinha sido a guerra colonial, já não se fazia do mesmo modo.
Uma das principais mudanças era exactamente a conclusão de que já não faz sentido que estes treinos incluam privação de água, tendo em conta os prejuízos provocados pela desidratação.
Segundo relatos que a Renascença ouviu de vários comandos que frequentaram o curso antes de 2015, a restrição de água nunca fez parte do seu treino. Houve mesmo quem dissesse que foram muitas vezes obrigados a ingerir água sem vontade.