08 jan, 2017 - 12:51 • Filipe d'Avillez
Durante anos, lidou com a morte a um ritmo quase diário. Foram milhares as autópsias que fez, tendo começado antes dos 20 anos, e em várias entrevistas disse que isso lhe tinha permitido fazer “o luto” da morte bem cedo.
“Pegava num bisturi, abria um cadáver, tirava-lhe as vísceras. Como poderia ter problemas com a minha morte? O convívio do patologista com o corpo morto dá-lhe noção de que a morte é um acontecimento natural e até está geneticamente condicionado”, afirmava ao Diário do Minho, numa entrevista publicada a 25 de Setembro, provavelmente, uma das últimas que deu.
Nessa mesma conversa, afirmava: “O tempo da morte é de uma riqueza formidável, mas é preciso ter disponibilidade e já se ter feito o luto da própria morte, senão projecta-se a ansiedade em cima daquele que está a morrer”.
A preocupação por quem estava a morrer, nomeadamente os cuidados paliativos, era uma das suas paixões. Ou, melhor, era uma vertente natural daquela que era a sua grande paixão: as pessoas.
“Sempre tive, continuo a ter e vou morrer com esta paixão”, afirmou em entrevista ao “Viva Porto”. E isso reflectia-se não só nas causas que tão eloquentemente defendeu, como ainda na forma como lidava com os mortos nas autópsias que fazia: “Quando começava uma autópsia, a primeira coisa que eu fazia era olhar para aquele cadáver como pessoa e pensar como teria sido a sua vida.”
Era a vida que verdadeiramente fascinava Daniel Serrão. A facilidade com que a encarava a morte decorria do facto de compreender que esta era nada mais que uma fase natural daquela e a fé, tão forte, de que não era o fim.
Essa fé levou-o a contemplar uma vida religiosa. “Ser médico venceu e, até hoje, não me arrependi, com a convicção de que eu poderia, como médico, realizar algumas das aspirações que achava que ia ter como monge beneditino, que era o serviço para os outros”, disse noutra entrevista, ao jornal i, na qual realça que esteve “sempre ligado à Igreja”.
Um dos seus maiores orgulhos foi ter sido convidado para fazer parte da Academia Pontifícia para a Vida, numa missão que o obrigou a conciliar os mundos da ciência e da fé, algo que fazia sem dificuldade. “Nós temos um cérebro e o cérebro faz a mesma coisa quando pensa em problemas metafísicos, religiosos, transcendentais ou quando pensa em investigação científica, biológica, matemática ou físico-química. Nós só temos um cérebro. Portanto, não podemos dizer que haja conflito”, disse ao "Diário do Minho".
À Renascença, entrevistado a propósito da publicação de um livro sobre a sua vida, em 2011, apontou as alternativas à investigação em células estaminais embrionárias, desenvolvidas em parte por insistência da Igreja, como um grande sucesso: “Foi uma conquista. Se não tivesse havido esta posição [da Igreja], se calhar os cientistas continuavam a teimar nas células dos embriões sem obter resultados terapêuticos.”
Conhecido e respeitado em todo o mundo, sobretudo na área da bioética, era, em Portugal, uma referência obrigatória sempre que se falava de aborto ou de eutanásia, duas práticas com as quais discordava firmemente.
“Uma lei que permite que a mulher, até às dez semanas, decida livremente mandar matar o seu filho é uma coisa que eu não aceitarei até à hora da minha morte”, disse ao Diário do Minho.
O problema, considera, surge quando a morte parece o caminho mais fácil: “Já sabemos que a vida é difícil. Viver é difícil. Morrer é muito mais fácil."
Fácil ou não, Daniel Serrão, o médico que gostava de olhar para os doentes como “pessoas completas”, mesmo na altura da autópsia, morreu este domingo, dia 8 de Janeiro de 2017, aos 88 anos.