01 fev, 2017 - 06:32 • Dina Soares , Joana Bourgard (imagem)
Todos os dias, a mãe de Rita recebe os cuidados da Unidade de Assistência Domiciliária do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. Há mais de cinco meses em estado semicomatoso devido a um cancro terminal, a mãe de Rita é tratada em casa, um privilégio que, em Portugal, é quase tão raro como ganhar o Euromilhões.
Só em Lisboa, metade dos doentes tratados pelo IPO morrem na lista de espera dos cuidados paliativos. Sem camas destinadas ao internamento destes doentes, o maior hospital oncológico do país conta apenas com uma equipa de assistência domiciliária constituída por uma médica a tempo parcial, quatro enfermeiras e uma assistente social. Trabalham todos os dias, o dia inteiro, mas não conseguem sequer ultrapassar as fronteiras do concelho.
No país inteiro, mais de dois terços dos 90 mil doentes terminais não têm acesso a cuidados paliativos. De acordo com o presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, Luís Capela, há tantas pessoas a precisarem deste tipo de assistência como bebés a nascer, mas os cuidados que uns e outros recebem não são comparáveis.
Há, aliás, distritos, como Leiria, onde os cuidados paliativos pura e simplesmente não existem. “Ora, se o apoio à família é uma componente essencial dos cuidados paliativos, como é que se vai prestar esse apoio a uma família que está a mais de 100 quilómetros de distância?”, questiona Luís Capela.
É neste estado de carência absoluta em termos de cuidados médicos no fim da vida que surge o debate sobre a legalização da eutanásia. Uma discussão que, na opinião de Luís Capela, chega ao Parlamento antes do tempo. “Primeiro que tudo, é preciso promover uma discussão alargada em vez de a manter ao nível das elites, como está a acontecer. No entanto, há uma coisa que nos une, que é o sofrimento das pessoas. E perante o sofrimento, temos que actuar, como defendem os cuidados paliativos, sabendo nós que haverá sempre pessoas que vão pedir a eutanásia consistentemente. O que há a fazer nestes casos é trabalhar a razão desse pedido.”
O direito ou o dever de estar vivo
E é aqui que as águas se separam, entre os que pedem a despenalização e regulamentação da morte assistida – como reivindica a petição “Direito a morrer com dignidade”, discutida esta quarta-feira na Assembleia da República – e os que defendem que ninguém, em circunstância alguma, pode matar outra pessoa a seu pedido ou ajudar alguém a suicidar-se.
José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda e signatário da petição a favor da eutanásia, explica o que está em causa. “É decidir se alguém que está com uma doença duradoura, fatal e numa situação de sofrimento irreversível, que a deteriora, à luz dos seus próprios olhos, de uma maneira insuportável, pode pedir a eutanásia ao médico e este pedido tem que ser negado, caso contrário o médico é sujeito a pena de prisão”.
Situações limite para as quais, no entender do novo bastonário da Ordem dos Médicos, já há respostas. Miguel Guimarães lembra que a Ordem é contra a eutanásia e vai mais longe: muitos dos argumentos invocados pelos seus defensores já têm cobertura jurídica no Testamento Vital.
“Já temos em Portugal uma ferramenta poderosa, uma conquista civilizacional, o Testamento Vital, que nos permite decidir o que queremos ou não queremos em determinadas situações em que podemos até perder a autonomia para tomar essas decisões”, diz o bastonário.
Quando os tratamentos perdem o sentido
Disponível desde 1 de Julho de 2014, o Testamento Vital é um documento onde o cidadão pode inscrever os cuidados de saúde que pretende ou não receber e que permite também nomear um procurador de cuidados de saúde, alguém que o represente se perder a consciência, para garantir que a sua vontade é cumprida.
Passados dois anos e meio da criação deste instrumento, só há 6.200 pessoas registadas. Como o número de pessoas que deixa a sua vontade expressa é irrisório, muitas vezes os médicos acabam por não parar quando devem, caindo na chamada obstinação terapêutica.
“Está estudado que os últimos 30 dias de vida das pessoas que estão nos hospitais têm um custo brutal e totalmente desnecessário devido à obstinação terapêutica. Há doentes que poucos dias antes de morrerem, de uma forma expectável, ainda fazem ressonâncias, quimioterapia, antibióticos, vão para os cuidados intensivos”, denuncia Luís Capela.
Também por isso, José Manuel Pureza defende a maior divulgação do Testamento Vital e um investimento sério nos cuidados paliativos. “Há um conjunto de abordagens do fim da vida que devem, todas elas, merecer investimento por parte da sociedade. Mas não creio que umas devem ser feitas primeiro e outras depois. Uma sociedade pluralista e democrática deve encontrar meios de proporcionar a todas as pessoas escolhas, com garantias de respeito por cada um, e fazê-lo investindo em todas as abordagens que vão no sentido de respeitar os direitos das pessoas”.
Despenalização ou crime sem pena?
E é de direitos, e do direito supremo e inviolável à vida que falam os grandes opositores da eutanásia. José Ribeiro e Castro, subscritor da petição “Toda a vida tem dignidade”, contra a legalização da eutanásia, considera que basta respeitar o artigo 24º da Constituição, que determina que a vida humana é inviolável, para que qualquer tentativa de legalizar a eutanásia caia por terra. “Se a eutanásia for aprovada, a Constituição está a ser tratada como uma palhaçada”, atira.
José Souto Moura, antigo procurador-geral da República e actual juiz do Supremo Tribunal de Justiça, partilha desta leitura da lei fundamental e, por isso, considera inaceitável que a morte a pedido deixe de ser um acto ilícito. No entanto, não rejeita uma revisão do Código Penal que inclua atenuantes para estes casos.
“Se entenderem que há mesmo que mexer no Código Penal, então que se acrescente uma cláusula de atenuação especial, verificadas que estejam determinadas circunstâncias do género doença terminal, doença sem cura, vontade expressa e reiterada do paciente, sofrimento insuportável. Este tipo de circunstâncias poderia levar, no limite, à dispensa de pena. Deste modo, a vida humana teria sempre protecção jurídico-penal e eu acho que esta solução estaria mais de acordo com a Constituição”, afirma o ex-PGR.
A solução avançada por Souto Moura seria, na opinião de José Manuel Pureza, uma espécie de solução a meio caminho que não iria resolver nada. “Mas por que é que temos que ter meios caminhos? Não há nenhuma razão para isso. No fundo, é uma sociedade que diz que isto é crime, mas pode ser praticado. Não creio que devamos seguir esse caminho.”
O que Souto Moura considera admissível é que a lei portuguesa adopte a mesma filosofia seguida, por exemplo, no Uruguai e na Colômbia onde a lei mantém o crime e a pena mas prevê igualmente uma norma que possibilita a aplicação de um perdão judicial que isenta o agente de responsabilidade criminal, quando o homicídio é praticado a pedido reiterado da vítima em estado terminal e com a intenção provada de pôr fim ao seu sofrimento intenso e irreversível. Actualmente, a lei portuguesa prevê o crime de “homicídio a pedido da vítima” (punível com pena de prisão até três anos), o “homicídio por compaixão” (prisão de um a cinco anos) e “o incitamento ou ajuda ao suicídio" (prisão até três anos).
Até agora, apenas o Bloco de Esquerda e o PAN (Partido Pessoas, Animais e Natureza) avançaram com a intenção de apresentarem diplomas nesta matéria, mas não têm ainda data prevista para o agendamento na Assembleia da República.
Para José Ribeiro e Castro “seria de uma gravidade extrema que a Assembleia da República, violando a Constituição, aprovasse uma lei que dê a alguém o direito de matar”.