21 jun, 2017 - 08:20 • João Carlos Malta (texto) e Joana Bourgard (fotografias e vídeo)
Faltava pouco para as 19h00, Hélia estava com os pés de molho na piscina da Roca, em Castanheira de Pêra. O neto andava a chapinhar pela água. Via-se o fogo, mas lá longe ainda. Nada que metesse medo. No entanto, os raios anunciavam uma tempestade seca. O director da piscina mandou todos saírem da água. Por precaução. O espaço estava prestes a fechar.
Muitos dos que passaram a tarde a banhos eram de fora da povoação, estavam hospedados no Lagar do Lago. Lá estavam José e Sandra, dois empregados do hotel em que estavam alojadas 37 pessoas. Lembram-se de tudo se precipitar num instante. De repente, as chamas já circundavam a vila.
Passados poucos minutos, o que os dois empregados viram foi algo de brutal. O pânico em estado puro começou a apoderar-se das pessoas. Houve famílias a sair dos quartos e a deixar as malas para trás. Só queriam ir dali para fora.
Uns metros à frente, no café-restaurante Gil, Lurdes Henriques descreve o mesmo filme. "Muitos turistas até jantaram cá, mas depois entraram em pânico. Queriam ir para Lisboa, só falavam em Lisboa. A uns ainda lhes disse para irem para o lado da Lousã [local contrário à direcção das chamas], a outros, um casal com duas crianças, tanto lhes pedi para não irem. Ainda levaram uma garrafa de água", lembra.
Todos afluiram à saída de Castanheira de Pêra na direcção de Figueiró dos Vinhos. A GNR estava no local. O IC8 foi cortado. A EN 236-1 estava aberta.
"Houve uma falsa indicação, muitas pessoas queriam sair mas não sabiam para onde ir. Houve alguns militares da GNR que estavam a indicar [o caminho] para a morte. Foi um fim-de-semana de horror", enfatiza Sandra, empregada do hotel.
A gravidade do que aconteceu na "estrada da morte" já levou o primeiro-ministro a reagir. Em entrevista à TVI na noite de terça-feira, António Costa revelou a versão que a GNR lhe deu dos acontecimentos.
"Que eu tenha conhecimento, não há nenhuma instrução específica para o encerramento daquela via conforme aqui diz a GNR", avançou.
Segundo o líder do Governo, a GNR justifica o que aconteceu com a "forma totalmente inesperada, inusitada e assustadoramente repentina" com que o fogo tomou a estrada, "surpreendendo todos, desde as vítimas aos agentes de Protecção Civil, nos quais se incluem os militares da Guarda Nacional Repúblicana".
Nem a GNR nem o Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria quiseram responder a nenhuma questão sobre este assunto colocada pela Renascença.
Horas antes, a vice-presidente da Câmara Municipal de Castanheira de Pêra, Ana Paula Neves, alinhava na mesma versão.
"Penso que ninguém contava, não era provável, nem imaginável que houvesse um fenómeno que actuasse com esta rapidez e destruição", afirmou a autarca à Renascença. "Penso que se fez tudo o que se devia ter feito", defende.
Hélia, que esteve na piscina, mas não saiu de Castanheira, onde mora, também não quer fazer uma caça às bruxas. Acredita que tudo foram desmandos da natureza. "Agora as pessoas põe a culpa a uns e a outros, mas foi tudo muito rápido. Não foi falta de A, de B, de C ou de D", afirma, enquanto bebe um café no Gil.
A dona do café discorda da cliente. Sabe-se agora que já havia mortes naquela estrada, pergunta porque é que ninguém a cortou. "A GNR podia ter evitado muitas mortes. Fechava a estrada e evitava muitas mortes", repete. "Se calhar, não valorizaram nada. Aqui as pessoas chegavam em pânico a dizer que iam morrer todas", recorda a mulher, que confidencia que desde a tragédia que não vê nem lê nada sobre o assunto. "Não consigo."
Mas lembra-se de tudo com uma certeza. Se, por um lado, responsabiliza os guardas, por outro, não compreende a decisão das pessoas. "Se tivessem ficado na piscina ou aqui no centro [da vila] as pessoas tinham ficado a salvo. Eu dizia aos turistas para não se irem embora, que aqui não estávamos em perigo. O fogo anda para ali e as pessoas vão em direcção ao fogo?", pergunta incrédula.
A revolta é tanta que, passados alguns minutos, volta a disparar. Desta vez, até o Presidente da República leva um remoque. Diz que gosta dele, mas não gostou de o ver desta vez.
"Para acompanhar o Marcelo já há muitos carros de polícia e 'show-off', até gosto do Marcelo, mas não sei para que é que precisa de tanta polícia. É um aparato que até revolta a população. Na altura em que era preciso não se via ninguém. Agora vêm todos."
O comandante dos Bombeiros Voluntários de Castanheira de Pêra, José Domingues, também defende que não havia informação que levasse a um encerramento da via EN 236-1. "Penso que ninguém contava, ninguém pensava que isto acontecia com tanta rapidez", argumenta.
"Não era provável, nem imaginável que houvesse um fenómeno que actuasse com este nível de destruição", acrescenta.
José Domingues não quer ajudar a arranjar culpados. "Se alguém mandou avançar viaturas fê-lo a pensar que iam em toda a segurança", sustenta, sublinhando que com todos os anos que tem de serviço nunca pensou assistir a um fenómeno desta magnitude.
Questionado sobre se a qualidade das explicações dadas pela GNR o satisfazem, o primeiro-ministro garante que "a resposta final vai surgir no devido tempo". Ainda assim, Costa diz que a justificação da Guarda é consonante com o que lhe foi dito no terreno pelos autarcas, técnicos das câmaras e populares.
No final, só depois do inquérito, se poderá dizer com toda a certeza como e porque foram tomadas as decisões de não cortar aquela que se tornaria tragicamente conhecida como a "estrada da morte".