11 jul, 2017 - 13:38 • André Rodrigues
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O Ministério Público acusou 18 agentes da PSP pela prática de vários crimes, entre os quais tortura e sequestro agravado, enquanto executavam as suas funções no bairro da Cova da Moura, na Amadora, em Fevereiro de 2015.
O director executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Neto, diz que este não é um caso isolado de abusos policiais no país, mas é o “pior” de todos os que a organização não-governamental conhece.
Esta investigação por alegada prática de agressões e tortura por parte da PSP na Cova da Moura é algo sem precedentes em Portugal. Surpreendem-no os dados hoje revelados?
Não nos surpreende de forma alguma. Desde Fevereiro de 2015, quando aconteceram este problemas, a Amnistia Internacional (AI) tem acompanhado este caso de forma muito próxima. Ao longo deste dois anos, desenvolvemos várias diligências, quer no terreno, quer em reuniões com a PSP e com o ministério da Administração Interna.
Por isso, não nos surpreende este desfecho. Apesar de lamentarmos o tempo que demorou até chegarmos à formalização da acusação, congratulamo-nos com este ponto a que estamos a chegar. É um passo que acreditamos que é decisivo para o esclarecimento cabal dos acontecimentos e para a reposição da justiça.
Por outro lado, não devemos cair no discurso do ódio e da generalização. Os agentes da polícia são, na sua esmagadora maioria, bons profissionais na medida em que protegem o cidadão e fazem cumprir este Estado de Direito em que vivemos.
Dito isto, há que separar o trigo do joio. Há uma grande minoria de agentes que têm condutas passíveis de procedimentos disciplinares. Seja como for, acusação não é condenação.
Se tal vier a acontecer, também haverá responsabilidades criminais por uma situação que não podemos aceitar que exista no Portugal dos nossos dias. Não podemos aceitar a discriminação, não podemos aceitar o racismo nem a agressão física com base em ódio xenófobo.
Este caso ganha visibilidade acrescida por ter ocorrido num bairro conhecido por ser socialmente sensível? Ou a AI tem conhecimento de outras situações mediaticamente menos visíveis que possam ocorrer noutras esquadras ou noutras zonas do país?
A questão da violência policial é a que mais vezes vem mencionada nos nossos relatórios anuais sobre o estado dos direitos humanos no mundo. E também em Portugal.
Há dois fenómenos que identificamos no trabalho que fazemos no terreno e nas queixas que nos chegam: há episódios que não passam disso mesmo, situações isoladas, e há outras que podem constituir um padrão.
No entanto, temos sempre pedido ao MAI o fornecimento de estatísticas para que possamos actuar não com base em percepções, mas com base em dados completos sobre o que está a acontecer.
E a tutela tem sido cooperante nesse apuramento dos dados?
Sim. Tivemos ainda esta semana uma reunião com o chefe de gabinete da senhora ministra, que foi inexcedível na colaboração connosco e, até mesmo, ao nível do próprio trabalho que é desenvolvido internamente no próprio MAI, designadamente na relação e na troca de informações entre o ministério e a Inspecção-Geral da Administração Interna que investiga este tipo de queixas que chegam alegados maus procedimentos por parte das polícias.
Mas o que dizem os números da tutela? Há ou não outras situações de gravidade semelhante à deste caso da Cova da Moura?
Não. Do conhecimento que temos, este caso foi o pior caso de todos. Mas é possível identificar um padrão: aconteceu num bairro mais pobre, onde a população é mais frágil. E isso também não podemos aceitar porque isso é uma discriminação social a que estas pessoas são votadas. Isto para já não falar de toda a outra discriminação social que se traduz na exposição destas pessoas a condições de vida muito mais frágeis, a um grau de pobreza difícil de descrever.
Tudo isso favorece o aliciamento de crianças e jovens para caminhos à margem da legalidade, porque eles mesmos são vítimas deste estado de coisas.
E isso pode depois levar a que, tanto a população como a polícia, entrem em confronto por pontos de vista extremados, o que aumenta as clivagens.
Temos de combater isso e aproximar as partes para que não haja lugar a este tipo de comportamento por parte de agentes que possam estar na PSP com motivações erradas e, por isso, agem de forma errada.
Mas este caso de que agora tomamos conhecimento é ou não um caso isolado?
Infelizmente não. Houve mais episódios de violência policial que nos foram reportados, em particular, um que ocorreu na madrugada de 25 de Novembro do ano passado, não no interior da esquadra mas sim no próprio bairro da Cova da Moura. Por isso mesmo é que é importante prevenir estas situações e, principalmente, identificar os agentes para que não se caia no risco da generalização. Insisto: nem todos os polícias nem todas as forças de segurança são discriminadoras e racistas.
Do seu ponto de vista, este caso das agressões aumenta ainda mais o risco de que os próprios habitantes da Cova da Moura estejam eventualmente mais disponíveis para partirem de imediato para o confronto com as autoridades, de cada patrulha que entra no bairro?
Isso infelizmente já acontece. E as consequências psicossociais são devastadoras. No trabalho que fazemos com as associações da Cova da Moura, temos o caso de uma criança que falou com uma psicóloga e disse-lhe que tinha pesadelos com os polícias da carrinha azul. Porque já viu os agentes do Corpo de Intervenção da PSP a agredir fisicamente familiares seus. E quando perguntaram a essa criança sobre a polícia de proximidade, ela não soube identificar que tanto os polícias da carrinha azul como a polícia de proximidade eram das mesma instituição.
Por isso, a clivagem já acontece e o medo já existe. O que precisamos agora é de repor a justiça e construir pontes para que a normalidade volte a acontecer e para que as pessoas se sintam protegidas pela PSP no bairro. E para que a própria polícia também sinta que o bairro é um sítio como qualquer outro, onde vivem pessoas como quaisquer outras e que as suas funções de protecção são as mesmas lá como noutro sítio qualquer.