18 nov, 2017 - 09:08 • Sandra Afonso
O Ministério Público ainda não divulgou toda a informação que reuniu e por isso deverão ser conhecidos mais beneficiários do “saco azul” do Grupo Espírito Santo (GES), acredita Luís Rosa, autor do livro “A Conspiração dos Poderosos”.
Em entrevista à Renascença, o jornalista considera que o antigo homem forte do BES falou de Marcelo Rebelo de Sousa nos interrogatórios como uma táctica e uma “forma de recado”, para demonstrar que sabia mais do que estava a dizer.
A maior surpresa “é o facto de Ricardo Salgado não assumir uma única culpa”, sublinha Luís Rosa.
“A Conspiração dos Poderosos”, que chegou esta sexta-feira às bancas, reúne os interrogatórios judiciais de Ricardo Salgado nos três processos em que está envolvido – “Monte Branco”, “Universo Espírito Santo” e “Operação Marquês”.
Ricardo Salgado admite que quando a família regressa do exílio, depois de ter sido expropriada após o 25 de Abril, já tinha um pequeno Grupo Espírito Santo numa “offshore”. Que grupo é este?
Isto não deixa de ser irónico, face àquilo que nós sabemos hoje ou o que aconteceu, passado 30 anos, a família decidiu reestruturar o GES e concentrar o grupo em diferentes pontos geográficos. Foi uma forma de proteger-se de uma futura ou futuras nacionalizações ou, um conceito que na altura não existia, uma resolução. Uma parte do grupo ficou assente em sociedades “offshore”, umas nas Bahamas, outras noutros paraísos fiscais. O grupo assenta essencialmente no Brasil, na Suíça e no Luxemburgo.
Quando regressam a Portugal, para a privatização do Banco Espírito Santo Comercial de Lisboa [BESCL] e da Tranquilidade, verifica-se o início da utilização do “saco azul”. Fica estabelecido que, para não sobrecarregar a folha salarial do BESCL e da Tranquilidade, para não sobrecarregar a folha salarial dos administradores, os membros da família Espírito Santo receberiam uma parte do salário via “saco azul”, via a Espirito Santo Financial.
Salgado reconhece que as contas do “saco azul”, na Suíça, podem ter sido abertas ou pelo ex-contabilista da Espírito Santo International (ESI), Machado da Cruz, ou pelo braço direito, José Castella. Mas a gestão não era feita por nenhum dos dois.
Não. O gestor operacional era um senhor chamado Jean-Luc Schneider, um alto funcionário do GES, suíço, que tinha entrado no Grupo Espírito Santo nos anos 90, que obedecia única e exclusivamente a ordens e instruções de Ricardo Salgado, é o próprio que o diz. Exemplo disso, são as transferências feitas para Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, em que Salgado no interrogatório da Operação Marquês admite que as instruções foram dadas por ele.
Sobretudo a partir de 2007/2008, quando o BES deixa de pagar dividendos, este “saco azul” é alimentado quase exclusivamente com emissão de dívida, ou seja, com o dinheiro dos clientes do BES em Portugal, Suíça, França e Dubai. Terão sido emitidos mais de 10 mil milhões de títulos de dívida do GES. Quem controlava estes alegados esquemas fraudulentos?
Segundo os indícios recolhidos pelo Ministério Público, tudo aponta que Ricardo Salgado era o homem por detrás desse alegado esquema fraudulento. Todos esses esquemas eram controlados pelo Departamento de Mercados do Banco Espírito Santo. As sociedades do grupo Espírito Santo emitiam dívida e depois as sociedades “offshore”, devidamente financiadas, compravam e revendiam ao BES. Esse esquema era controlado pelo Departamento de Mercados com a ajuda do Eurofin, aquela sociedade Suíça de que muito ouvimos falar, que está a ser investigada pelo Banco de Portugal e pelo Ministério Público.
Durante os interrogatórios, Ricardo Salgado disse desconhecer esses mapas de liquidez.
Ele diz que desconhece os mapas, mas também há vários depoimentos prestados por esses funcionários que apontam para o seu conhecimento. Há também uma transmissão de informação, muito concreta, de Isabel Almeida, que era a directora do departamento, para Amílcar Morais Pires, que era o “chief financial officer” do BES, para Ricardo Salgado. Há uma hierarquia e há uma cadeia de comando e também de informação, que emite ordens e recebe informação.
Outro pormenor que estes interrogatórios revelam é que a Espírito Santo Enterprises acabou por ser utilizada como um banco, foram movimentados depósitos de clientes, ou seja, foram realizadas operações bancárias através de uma empresa.
A Espirito Santo Enterprises foi investigada pelo regulador suíço, por alegadamente ter captado depósitos irregularmente, na Suíça, e transferiam esses fundos para o Luxemburgo. Essa investigação não deu lugar a nenhuma acusação contraordenacional contra o BES, que se saiba. Mas não deixa de ser irónico que, nos anos de 1990, a Enterprises, o “saco azul” do BES, tenha sido investigado por actividade bancária irregular, tendo em conta tudo o que nós sabemos. É um pormenor muito interessante.
O “saco azul” começa por ser criado para pagar parte dos salários dos cinco clãs da família Espírito Santo. Depois estes pagamentos são alargados a altos funcionários do departamento financeiro e departamentos de fiscalização. Estes não são funcionários quaisquer, qual é a função deles?
A função, nomeadamente dos funcionários de auditoria, era fiscalizar a actividade interna do banco. Estamos a falar de uma sociedade cotada, um dos maiores bancos portugueses, se os departamentos de auditoria do banco funcionassem, se os auditores externos tivessem feito o seu trabalho, obviamente teríamos tido a identificação do problema mais cedo e, provavelmente, o BES não teria tido uma resolução.
Esse é também um lado muito interessante, porque o “saco azul” do GES teve essa primeira fase de pagamento de salários, aos membros da família Espírito Santo, depois numa segunda fase foi alargado a altos funcionários. Passamos então à terceira fase, a titulares de órgãos sociais de empresas participadas pelo GES, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava são exemplo disso, era uma forma de controlar a Portugal Telecom e existem indícios que isso poderá ter acontecido noutras sociedades.
E depois também houve pagamentos a titulares de cargos políticos. José Sócrates, para já, é o nome que se conhece, vamos ver se há revelações de mais nomes, estou convencido de que o Ministério Público tem mais informação. Há alguns mitos urbanos sobre este ponto, é importante esclarecer que a informação que o Ministério Público tem é oficial, não lhe foi passada pela “porta do cavalo”, é documental, foi-lhe transmitida pelo Ministério Público suíço. As contas estão identificadas, os destinatários dos fluxos financeiros também estão identificados, a banca suíça é obrigada há vários anos a identificar os titulares de contas “offshores”. Essa informação foi transmitida. Vamos ver se vão ser descobertos mais nomes, tenho a convicção que sim.
Os funcionários eram também obrigados a ter conta no Banco Privé Espírito Santo, onde o “saco azul” tinha todas as contas e Ricardo Salgado é suspeito de corrupção activa dos funcionários. Por muito que Salgado diga, e diz, que o GES sempre transmitiu aos funcionários que tinham que regularizar a sua situação fiscal, os indícios que existem é que isso era um esquema de fraude fiscal organizado e não um mero pagamento transparente e legal de salário. Se fosse assim alguns não punham a conta na Suíça, em nome de familiares.
Passando para Angola, o BES nunca conseguiu vender a Escom aos angolanos, mas os documentos apreendidos provam que ficou com 52,2 milhões, de um contrato entretanto revogado, que entraram numa conta da ES Resorces e desapareceram para local desconhecido. Qual é a importância da Escom no processo?
Foi uma das empresas que mais publicidade negativa deu ao Grupo Espírito Santo. Ricardo Salgado é constituído arguido, pela primeira vez, no inquérito “Monte Branco” e a razão para o chamar e constituir como arguido é precisamente o negócio Escom. A Escom tem muito a ver com Hélder Bataglia e com uma relação íntima e profunda, promovida por Ricardo Salgado, entre o BES e a República de Angola, entre Ricardo Salgado e a nomenclatura de José Eduardo dos Santos. A Escom e o BES Angola são dois grandes exemplos de liquidez que o BES conseguiu e necessitava, sabemos hoje nós. Angola deu muita liquidez ao GES, através do BESA e da Escom.
Quando o GES vende a Escom, falou-se muito de Álvaro Sobrinho e da Newbrook, a sociedade “offshore” que aparecia como compradora. É o próprio Ricardo Salgado quem o diz, Hélder Bataglia confirma e Álvaro Sobrinho também, que a Newbrook era apenas e só um intermediário, o verdadeiro comprador era a Sonangol. Mas Salgado diz uma coisa mais interessante, é que Manuel Vicente, na altura presidente da Sonangol, futuro vice-presidente da República de Angola, e o general Leopoldino Nascimento, conhecido por general “Dino”, um alto representante militar, membro do gabinete de José Eduardo dos Santos e um dos principais empresários angolanos, são estes dois homens que aparecem como compradores de facto da Escom, não é a Sonangol. Existe aqui a suspeita de saber se Vicente e “Dino” estariam a utilizar fundos da Sonangol para comprar a Escom.
O negócio, no entanto, nunca foi para a frente. Esses 52,2 milhões de euros correspondem a um sinal do contrato promessa. A Newbrook, Álvaro Sobrinho, revoga o contrato promessa, abdicando dos 52,2 milhões de euros, que ficam para o GES. O que é que aconteceu aos 52 milhões? Ainda não sabemos.
Como é que Salgado descreve a relação com José Eduardo dos Santos?
Descreve com grande respeito, que levou até a própria República de Angola, com a ordem de José Eduardo do Santos, a emitir uma garantia soberana para o buraco do BESA. Álvaro Sobrinho sempre apareceu aqui como o único culpado do buraco do BESA. Sempre achei estranha a narrativa oficial de Ricardo Salgado e do GES, que se desconhecessem a esmagadora maioria dos beneficiários dos créditos, alegadamente concedidos de forma irregular, que terão dado origem ao buraco superior a cinco mil milhões de euros. Sobrinho assume as suas responsabilidades, assumiu na Comissão Parlamentar de Inquérito, mas também me parece, e o Ministério Público tem esses indícios, que Ricardo Salgado sabia muito mais e estava a par de muito mais do que acontecia no BESA do que aquilo que ele quer fazer crer hoje.
Como é que Marcelo Rebelo de Sousa é envolvido por Salgado nesta investigação?
Acho que é envolvido como uma forma de recado, por parte de Ricardo Salgado. Marcelo Rebelo de Sousa era colonista do [Semanário] “Sol”, na época, Marcelo tenta ajudar a direcção do “Sol” a encontrar um novo acionista. Hoje é público, o “Sol” estava a ser estrangulado pelo BCP de Armando Vara. Marcelo contactou com Ricardo Salgado a perguntar se ele estaria disponível para receber o director do “Sol”, no sentido de lhe ser concedido um crédito. É o próprio Salgado que diz a Marcelo Rebelo de Sousa para contactar Álvaro Sobrinho, no sentido de encontrar um novo acionista.
Sinceramente, não me parece que Marcelo Rebelo de Sousa tenha feito aqui alguma situação irregular, parece-me, sim, que Ricardo Salgado quer envolver o nome do Presidente da República na situação, tal como ao longo dos três interrogatórios, em alturas distintas, sempre quis demonstrar que sabia muito mais do que aquilo que estava a dizer no momento. Falou de outras pessoas, no sentido de ficar registado que ele conhecia essas pessoas e que essas pessoas tinham conhecimento de alguma situação.
Para terminar, qual foi a maior surpresa nestes interrogatórios?
A maior surpresa, confesso, é o facto de Ricardo Salgado não assumir uma única culpa, não assumir a responsabilidade por nada. Há uma sacudidela da água do capote constante e permanente, ao longo de três interrogatórios, em três anos diferentes, em três alturas diferentes, em três momentos diferentes até da própria forma como Salgado era olhado pelo exterior e como ele próprio analisava o seu poder.
Em 2014, no processo “Monte Branco”, ainda julga ter muita influência, uma característica do “dono disto tudo”; no segundo interrogatório, do inquérito BES/GES, continua a pensar que tem influência; e na “Operação Marquês” cai na real e percebe que já não tem influência, quando lhe é imputada a alegada corrupção de um primeiro-ministro de Portugal. Mas seria muito positivo que o dr. Ricardo Salgado, pelo menos, assumisse que houve incompetência da sua administração e da sua liderança. Se não houve nenhuma irregularidade, então houve muita incompetência, e ele não assume rigorosamente nada.