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​Violência doméstica. Em 2018, o agressor vai deixar de ser "ganhador"?

03 jan, 2018 - 14:38 • Teresa Abecasis , Rodrigo Machado (pós-produção vídeo)

Associação Portuguesa de Apoio à Vítima encontrou pensamentos “misóginos" nos acórdãos polémicos de 2017. E pede formação obrigatória para os juízes sobre um crime que matou pelo menos 19 pessoas no ano passado.

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Violência doméstica. A justiça portuguesa está no século XXI?
Violência doméstica. A justiça portuguesa está no século XXI?

As palavras da juíza Joana Ferrer Antunes sobre a alegada violência exercida por Manuel Maria Carrilho sobre Bárbara Guimarães durante o casamento são apenas mais umas num cenário de acórdãos polémicos sobre violência doméstica que marcaram 2017.

Diz a juíza que "uma mulher determinada e senhora da sua vontade 'casa' mal com qualquer tipo de inibição, no caso de efectivamente se encontrar numa situação de perigo a que tivesse de reagir". Em entrevista à Renascença, Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), afirma que tudo está errado nestas palavras.

O erro, defende, começa no desconhecimento científico e prolonga-se nas consequências graves que traz para o sistema, para a vítima e para o agressor, que sai como "ganhador" de todo estes desentendimentos.

A solução, argumenta Daniel Cotrim, passa por uma formação na área da violência doméstica para todos os que trabalham nesta área, magistrados incluídos.

O relatório mais recente da APAV, de 2016, aponta para uma média de 100 mulheres por semana vítimas de violência doméstica. Mas estes números baseiam-se nos casos conhecidos – "há muitas mulheres que não se queixam".

Em 2017, pelo menos 19 pessoas (dados provisórios) foram mortas pelos parceiros, ex-companheiros ou familiares próximos. Em 2016, foram 21. E muitas destas vítimas não estavam referenciadas nem em organizações nem em forças policiais.

Como é que a APAV vê as considerações dos juízes nos acórdãos sobre violência doméstica que têm sido divulgados na comunicação social?

Vemos com muita inquietação até. Soa-nos a um tema já antigo. Aquilo que vemos ressurgir, pelo menos nos acórdãos de que vamos tendo conhecimento, é alguns modos de expressão e alguns modos de falar das vítimas como se estivéssemos ainda num país em que pouquíssima coisa tivesse sido feita em prol das vítimas de crime e, nomeadamente, relativamente às mulheres e às vítimas de violência doméstica.

Por um lado, a responsabilização das mulheres enquanto vítimas através das expressões associadas – "mulheres autónomas" ou "mulheres com determinado tipo de vidas ou de carreiras" que não se conseguem elas mesmas defender nestas situações. Isto vai tudo contra aquilo que hoje sabemos de forma científica, e já não é empírica só, de que a violência doméstica é transversal à sociedade (atinge pessoas de todos os géneros, de todas as raças, de todos os estratos sociais).

E, por outro lado, outra das nossas inquietações prende-se com o próprio discurso machista, misógino, patriarcal, que retorna neste tipo de concepções e de abordagens que as próprias magistraturas vão fazendo relativamente às questões da violência doméstica.

Que consequências é que estas decisões podem ter tanto para a vítima como para o agressor?

Estas decisões têm sempre consequências graves. No geral, têm consequências graves para o sistema todo: as organizações, o Estado, a justiça, a segurança, todos lá dentro. Porque as pessoas ficam mais desconfiadas. Relativamente à vítima, existem muitas mulheres e muitos homens que, sendo vítimas de violência doméstica e ouvindo este tipo de considerações que são tidas acerca de outros casos que se tornam públicos, ficam hesitantes. Porque o próprio sistema o culpabiliza ou a culpabiliza pelo que aconteceu.

Para o agressor, ou para a agressora, as consequências são as melhores possíveis. Que redunda quase sempre numa fase expressão: "Vês? Em ti ninguém acredita.” O agressor sai sempre como ganhador de toda esta situação.

O problema está quando os magistrados, para além de analisarem os factos, acrescentam considerações sobre os acontecimentos?

Isso é que é aqui a parte mais nefasta. Aquilo que nós, APAV, dizemos há muito tempo, é que é preciso trabalhar na formação de todos os agentes envolvidos na temática da violência doméstica. A formação na área da violência doméstica ainda não é obrigatória para os magistrados.

Não é ensinar aos magistrados sobre leis. É preciso é fazer-lhes perceber o que é ser-se vítima de violência doméstica.

É que, muitas vezes, a violência doméstica não é só maus-tratos físicos. Ela é violência psicológica, sobretudo. Ela é violência verbal. E o peso oneroso que tem a prova ainda no processo penal português é muito grande e não se compadece nas situações de violência doméstica.

Vou-lhe dar um exemplo. Quantas mulheres, vítimas de violência doméstica durante muitos anos, que aquilo que lhes faz o clique, o espoletar da primeira queixa junto de uma força de segurança é, por exemplo, um crime de dano, que não tem nada a ver com um maltrato físico.

O agressor destruiu um roseiral inteiro que esta mulher plantou uma vida toda. E com isto, esta mulher deprimiu, fez várias tentativas de suicídio, passou a ter distúrbios do ponto de vista psiquiátrico. É preciso ler, entender isto. E é preciso dar valor àquilo que outras entidades, que são especialistas na área da violência doméstica e no apoio a vítimas, dizem e que devem de servir de apoio à tomada de decisões dos próprios magistrados nestas situações.

As penas em Portugal para os crimes de violência doméstica são leves?

Não achamos que a situação se resolva com penas mais leves ou mais pesadas. Pelo contrário, achamos que, do ponto de vista da legislação, a portuguesa pode ser considerada uma das melhores da Europa. Neste momento, a lei consagra até cinco anos de prisão num caso de violência doméstica. O que resolveria, ou que poderia ajudar a resolver a questão era que a lei fosse aplicada. E fosse aplicada de uma forma célere, isso sim.

Vou ler uma citação de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 11 de Outubro de 2017: "Com estas referências, pretende-se apenas acentuar que o adultério é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (...) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher". O que lhe dizem estas palavras?

Fazem-me sentir muito triste por viver neste país. E por ser um profissional de apoio à vítima. Fazem-me lembrar palavras que nós ouvíamos há 20 anos. Estão completamente embebidas de pensamento machista, misógino, estereotipado, em que se culpabiliza a vítima, se culpabiliza a mulher, pelos comportamentos que teve ou deixou de ter, e que o comportamento de alguém pode ser parado, ou ela pode ser responsabilizada através da violência e que tal pode ser perfeitamente compreensível. Não faz sentido nenhum, em 2017, século XXI.

A violência é uma construção social. E nasce do poder. Nasce exactamente deste tipo de relações, e cada vez que num documento deste género, e com a abrangência que tem, e com a leitura que pode ter, é dito que alguém pode exercer o poder de forma violenta sobre outro, porque de acordo com os cânones da sociedade se portou mal, e que se pode exercer a violência, é porque algo vai muito errado na forma como nós olhamos as coisas.

Noutro acórdão, mais conhecido por envolver Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho, a juíza escreve: "(…) não se coaduna com as regras da normalidade que uma mulher determinada, independente e auto-suficiente em termos financeiros como é a Assistente (…) ficasse passivamente à espera de outros eventuais actos tresloucados da mesma natureza, por parte do Arguido (…)."

Mas que comportamento é que se coaduna com o de uma vítima? Voltamos outra vez à questão do tal exercício de poder. E quase que o poder também é exercido, podemos dizê-lo, pelo próprio magistrado, que descreve esta situação. A magistratura tem uma regra, que é deve-se pautar pela imparcialidade, pela objectividade e por não expressar juízos de valor.

E isto é um trabalho que a própria magistratura tem que fazer. Tem que ouvir as críticas da sociedade civil relativamente ao seu trabalho, mas achamos que também tem, internamente, que pensar e que avaliar a forma como falam e como dizem.

Um acórdão de uma sentença de tribunal não é um texto de prosa, não é uma obra literária que vamos publicar em livro, ou até que nos podemos dar ao luxo de publicar no nosso Facebook ou numa outra rede social qualquer. É um documento que vai ter peso para outras pessoas na vida delas. Portanto, temos que ter, ou tem que se ter muita cautela naquilo que se escreve e naquilo que se diz, do ponto de vista da justiça, porque vai obviamente ter implicações na vida de toda a gente e isso é extremamente perigoso.

Comentários
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  • Túlio
    14 jan, 2018 Brazil 02:19
    A quantidade de machos lamurientos, provavelmente agressores, é de impressionar...que tal fazerem algumas flexões, jogarem futebol ou quem sabe lutarem numa guerra, em vez desse tempo desperdiçado comentando em sites, a desqualificar mulheres agredidas? Vão capinar um lote, trabalhar numa obra...enfim...virem homens.
  • Albino Antunes
    04 jan, 2018 Lisboa 08:21
    Toda a acusação tem que ser provada, a violência doméstica não é nem pode ser excepção. Parcial e tendenciosa é a APAV que fez desta falsa vítima, Bárbara Guimarães, a heroína das duas jornadas contra a violência doméstica em 2014, ainda nem o julgamento tinha começado... O que a APAV e o s seus apaniguados estão a tentar fazer, é acabar com a "presunção de inocência" do acusado, base da nossa civilização, e impor uma "presunção de verdade" da vítima, que seria o regresso à selva. O que se vê nestes comentários é que ninguém seguiu as audiências, nem leu a sentença da juíza Ferrer, que é um exemplo de imparcialidade e de rigor que não vai em modas nem, como disse, em regressos de tribunais plenários onde o acusado já entrava condenado. Artigos como este e comportamentos como o da Bárbara Guimarães estão a desacreditar completamente o combate a esse crime hediondo que é a violência doméstica, mostrando como é fácil instrumentalizá-lo aos caprichos de cada um.Leiam a sentença e depois falem, são quase 300 páginas de humanismo e de sabedoria que ainda podem salvar a causa. A APAV está a fazer o contrário.
  • Miguel Oliveira
    03 jan, 2018 Lisboa 18:24
    Não era suposto a lei condenar os criminosos '??????????? Quem mata e agride é que é a vitima »???? Mas afinal em que faculdade tiraram direito ?????????
  • Macela
    03 jan, 2018 Porto 18:13
    A violência, seja ela qual for é intolerável. Verifico no entanto que quando se fala no tema centra-se especialmente na agressão física, já que a outra, de natureza psíquica, não é tão visível e é difícil de provar. Acontece que não são só as mulheres que são vítimas! Os homens partem mais facilmente para a violência física sem grandes artimanhas, as mulheres em geral são mais astuciosas e mais propensas à pressão psicológica nas mais diversas formas. Isto não é novidade nenhuma mas há uma certa tendência para desvalorizar o sofrimento do homem.
  • gary
    03 jan, 2018 Porto 18:11
    Esta associação perdeu toda a credibilidade.Os seus quadros têm gente com media de vinte ,cultura abrangente planetária,pró atividade cerebral diferenciada,competencias não tendenciosas especificas ou------------é tudo show-off
  • Gil Pereira
    03 jan, 2018 Porto 17:51
    Estas imagens são sempre de mulheres a serem as vitimas, um Homem também pode ser fisicamente agredido, insultado, humilhado, rebaixado, mas nunca é vitima! Se vai a policia, perguntam-nos se não nos sabemos defender, se nos defendemos somos agressores, se não fazemos nada somos uns bananas paus mandados das mulheres! Lamento pelas mulheres que morreram nas mãos de animais, mas está na hora de vermos o quadro inteiro! Se uma mulher bate num homem é agressão simples, mas se um homem responde... Ui Ui, é violência doméstica e tem 98% de chances para uma condenação. Vergonha essa imagem, e vergonha referirem-se as vitimas como mulheres, a vitima não tem género, é vitima e ponto.
  • Rui
    03 jan, 2018 Viseu 17:50
    A medida é boa. Resta saber é se é também para os casos em que o agressor é a mulher ou se é só para os casos em que o agressor é o homem...
  • António
    03 jan, 2018 Pereira 17:40
    E a agressora não se fala????porquê só o homem sempre a cabeça do problema? e a violência psicológica da mulher?porque nunca se fala no antes e só infelizmente nas consequências trágicas?como se prova a violência psicológica?insultos, manipulação parental, etc.?quando chega a violência física é fácil de provar e condenar............
  • Alberto
    03 jan, 2018 Coimbra 17:28
    1. Sem dúvida que só quem compreende a génese e os efeitos de uma realidade social está em condições de ajuizar sobre ela e a aquisição de conhecimentos nessa área é necessária. Verifica-se que todo o comentador que não é juiz entende que ele (comentador), sim, saberia fazer justiça se fosse juiz, mas desafortunadamente não é. Qualquer especialista entende que os juízes não sabem fazer o que estão a fazer; eles é que sabiam fazer bem, mas fazem outra coisa. É muito fácil falar mal dos outros, difícil é saber fazer bem. Seria interessante ver como agem profissionalmente esses comentadores e esses sábios. 2. Os tribunais estão no fim da linha. Por isso, os tribunais não podem ser vistos como um medicamento para esta doença. Há que perceber por que razão tantas mulheres são assassinadas todos os anos e o que pode ser feito para reverter esta situação. Por que razão há tanta violência? Não posso deixar de reparar que há 30 ou 40 anos não existia esta mortandade. O que mudou? Há que agir sobre as causas. 3. As penas a aplicar pelos tribunais não podem deixar de ser aplicadas a pessoas concretas e a pena de prisão pode nem sempre ser a recomendada se tiver como fundamento a prevenção geral (servir de exemplo para outros potenciais agressores). Com efeito, quando o agressor sair ao fim de alguns anos sairá com a vida mais desorganizada; poderá não encontrar emprego; é pressionado para pagar pensões de alimentos aos filhos, etc. Resultado, poderão criar-se condições para ele culpar a mulher sobre o que lhe está a acontecer e vingar-se assassinando-a.
  • Carvalho
    03 jan, 2018 Setubal 17:26
    A dita associação e a imposição de certos conceitos e regras por novos moralistas criando uma sociedade sem pilares leva-me simplesmente a querer converter-me ao islaoÉ uma vergonha a agressão de qualquer tipo mas o aproveitamento das mesmas pra insultar e condicionar profissionais é terrorismo puro.quem mata estes terroristas?Querem protagonismo vao para o EGIPTO,Arabia Saudita,Chinaetc e com certeza que lhes darão a devida atenção.Gostaria de os verem premiados nesses Países,coragem espalhem a vossa fé .Coragem?

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