18 jan, 2018 - 00:00 • Eunice Lourenço (Renascença) e David Dinis (Público)
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António Marinho e Pinto foi bastonário da Ordem dos Advogados entre 2008 e 2013. Polémico, trocou o palco da justiça pelo da política e é eurodeputado. Mas em Estrasburgo continua a olhar para a justiça com opiniões críticas, acusando o poder político de não ter coragem para fazer as reformas necessárias.
Em entrevista à Renascença e ao jornal “Público”, comenta o caso de justiça que envolve o ex-vice-presidente de Angola Manuel Vicente. “Não estamos a tratar com um angolano qualquer”, diz o antigo bastonário.
A abertura do ano judicial está muito marcada pela polémica sobre o julgamento em Lisboa do ex-vice-presidente angolano Manuel Vicente. Acha que Angola tem razão e que o processo deve ser transferido para Luanda?
Não me repugna a possibilidade de um determinado país julgar no seu território, na sua ordem jurídica, os nacionais do seu país que tenham cometido crimes no estrangeiro. O Código Penal português prevê essa possibilidade para cidadãos portugueses, pelo que deve aceitar que outros países queiram a mesma prerrogativa. Há aqui uma dimensão política e diplomática muito forte, que deveria ter sido tratada de outra maneira pelas autoridades portuguesas, incluindo pelas judiciárias. E não devia ter sido tratada da forma negligente como desde o início foi, pelas autoridades diplomáticas e políticas portuguesas. Portugal tem centenas de milhares de cidadãos que vivem e trabalham em Angola. E a primeira obrigação dos políticos é defender os interesses nacionais em qualquer parte do mundo em que estejam portugueses.
Como é que a política podia influir na questão judicial?
Não se trata de uma influência ou de interferência com o funcionamento do sistema judicial. Eu lembro que o Ministério Público não é uma magistratura independente, é um braço do Estado para perseguir a criminalidade. O procurador-geral da República é nomeado pelos órgãos políticos. Em alguns momentos tem que se articular o princípio da legalidade, ou seja, a subordinação total à lei, com princípios de oportunidade política - quando estão em causa interesses do próprio Estado que podem sobrepor-se ao interesse do Estado em punir determinados crimes.
Face às recusas das autoridades angolanas em dar informação ao Ministério Público (MP) português, face à imunidade que o ex-vice de Angola tem, é legítimo esperar um julgamento justo em Luanda?
O MP não tem que fazer esse tipo de considerações ou apreciações. O MP tem objectivos específicos e não deve fazer valorizações dessa ordem. Nem compete ao MP determinar se certa pessoa deve ou não ser julgada, pelo menos, não compete aos magistrados directamente ligados à investigação criminal.
Estando acima dos magistrados, compete a quem?
Ao próprio Estado. A administração da Justiça não tem que se sobrepor a outros interesses do Estado. Por exemplo, à democracia, à liberdade de imprensa... deixe-me dizer-lhe: os nossos governantes têm um regime jurídico especial no caso de serem demandados. O próprio Presidente da República, se cometer um crime no exercício de funções, só pode ser julgado depois de deixar de ser Presidente da República. Há regimes especiais que, por razões de Estado, se sobrepõem ao próprio interesse da administração da Justiça que, em determinadas circunstâncias podem e devem prevalecer.
E que neste caso deviam prevalecer?
Eu precisava de ter outros elementos que não tenho, em todo este complicado processo. Mas as coisas não são tão lineares como isso. Não estamos a tratar com um angolano qualquer, estamos a tratar com um vice-presidente de Angola. Não é de repugnar que se atribua a esse titular do órgão de soberania de Angola o que se atribui a cargos idênticos em Portugal.
Acha que o anúncio prévio de que a PGR, Joana Marques Vidal, não vai ter o seu mandato prolongado está relacionado com este caso? Será um sinal do Governo para Luanda?
Não acho que tenha sido feito esse anúncio. Penso que a ministra da Justiça deu uma opinião perante uma pergunta que lhe foi feita. Ela não é uma pessoa com grande trajecto político, respondeu com aquela simplicidade que um político profissional talvez não respondesse. Está-se a fazer uma tempestade num copo de água.
Concorda que é melhor um só mandato para a PGR?
Sempre defendi que na Justiça e em cargos de regulação, onde se exige grande independência das pessoas, deve ser um mandato único. Um mandato que possa ser renovado vai diminuir necessariamente as condições de independência. Porque grande parte do tempo vai ser ocupado a fazer coisas para merecer a graça de voltar a ser nomeado.
Que balanço faz do mandato da actual PGR?
Faço um balanço muito positivo. Tem um mandato muito positivo, teve noção dos limites da sua função, dos equilíbrios que é necessário ponderar. Mas considero também que não devia ser renovado, devia abrir-se a outro. Porque foi isso que esteve no espírito do aumento do prazo de duração do mandato para seis anos.
Houve várias polémicas ao longo deste mandato porque houve muitos processos envolvendo personalidades importantes, como José Sócrates. No pacto da justiça, a que chegaram os agentes do sector, há uma proposta para aumentar os prazos dos inquéritos quando estão pendentes respostas a cartas rogatórias. Acha bem, face às críticas do que demorou a acusação a Sócrates?
Não conheço integralmente as propostas. Mas o pacto da Justiça é uma ideia muito antiga. Visa mais confederar os interesses egoístas, profissionais das várias corporações que actuam na área da Justiça do que avançar com objectivos concretos que modernizem a Justiça e a coloquem ao serviço dos cidadãos, da economia, do desenvolvimento do país. Infelizmente, a Justiça tem funcionado mais ao serviço dos interesses corporativos dominantes - da magistratura judicial e da magistratura do Ministério Público.
Faz, então, uma avaliação negativa deste pacto?
Não é muito diferente de outros que se tentaram. Não falo da bondade das proclamações que se fazem. Ele visa confederar os interesses mais ou menos conflituantes das várias corporações que actuam no sistema judicial.
Mas ele foi desencadeado por um apelo do Presidente da República. O que é que acha que os partidos devem fazer com estas propostas?
Não sei. Analisá-las. O Presidente da República faz esses apelos. Olhe, são proclamações. Não tem havido vontade política desde o 25 de Abril. Tudo mudou em Portugal a partir do 25 de Abril. Mudaram os militares, as empresas, a Igreja Católica, mas se entrar num tribunal as coisas passam-se lá dentro como se passavam há décadas, até há séculos. Ali nada muda, aquilo é graniticamente corporativo...
E não muda porquê?
Porque os magistrados não querem mudar - sentem-se bem assim porque são reis e senhores absolutos da sala dos tribunais, da Justiça. E o poder político não tem coragem para fazer as reformas que deviam ser feitas. Se o Marquês de Pombal ressuscitasse ele caía para o lado com as mudanças ocorridas, mas o levássemos para a sala de audiências de um tribunal ele sentava-se e assistia a tranquilamente a um julgamento como se fosse no seu tempo. A Justiça não pode existir para ser permanentemente glorificada, entronizada, tratada como se fosse de Deuses e divindades. Se qualquer de vocês entrar num tribunal tem que se dirigir a um juiz da forma como um servo na antiguidade se dirigia ao seu senhor. Qualquer um de nós fala mais à-vontade com o Presidente da República do que fala com um juiz: é ilustríssimo, é venerando, é ilustríssimo, tudo é superlativamente oco e balofo no nosso sistema judicial.
Como é que se resolve?
Fazendo leis. Punindo os atrasos. Criando incentivos para os magistrados trabalharem. O que eles têm é desincentivos - sentem-se prejudicados se trabalharem, porque comparam-se com os do lado... Eu cheguei a ver: havia um juiz que fazia o quíntuplo dos julgamentos do que o outro, mas ganhavam o mesmo. E foram promovidos ao mesmo tempo. Isso conduz à nivelação pela mediocridade.
Foi bastonário da Ordem dos Advogados. Que lhe parece o aperto que os partidos estão a preparar às incompabilidades de deputados que sejam advogados?
Só peca por ser tarde demais e por serem tímidas demais. Sempre defendi que quem está no Parlamento a fazer leis não pode estar num gabinete a receber como cliente alguns dos beneficiários dessas leis - e a cobrarem por isso. A Assembleia da República era uma plataforma giratória de interesses promíscuos, sobretudo de grandes sociedades de Lisboa e do Porto.