08 fev, 2018 - 00:00 • Eunice Lourenço (Renascença) e David Dinis (Público)
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Aos 37 anos, Ricardo Baptista Leite, junta a medicina e a política. É médico com distinções pelo trabalho desenvolvido sobre hepatite C, deputado do PSD, autarca em Cascais, coordenador científico de Saúde Pública no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa, assistente convidado na Universidade Nova, doutorando em Saúde Pública.
Em entrevista à Renascença e ao Público, explica a moção que leva ao congresso do PSD, marcado para os dias 16 a 18, em que defende a legalização da venda de cannabis em farmácias. E manifesta a sua firme oposição à legalização da eutanásia, deixando um apelo à responsabilidade dos deputados.
Vai levar uma moção ao congresso do PSD em que defende a venda de cannabis em farmácias a preços de mercado. É uma provocação?
Não, de todo. É totalmente baseada na ciência e vem da minha experiência profissional. Lidei com muitos doentes, de populações muito vulneráveis. Vi em primeira mão as consequências nefastas das dependências na vida das pessoas. Enquanto deputado, acumulando literatura sobre os efeitos positivos que teve a descriminalização do consumo de drogas no país. E quando começaram a surgir exemplos sobre a legalização da cannabis em vários países e estados americanos comecei a ver com interesse. Enquanto estudante de medicina, fui ensinado claramente a ser contra a legalização, por causa dos riscos para a saúde mental. E criaram-se uma série de fundamentalismos...
O que é que o fez mudar de posição...
Perante tantos países a seguir este caminho, perante revistas internacionais com peso que estavam a defender esta matéria, dei um passo atrás e fiz um exercício. Inicialmente era contra a legalização. E entreguei-me à ciência. Já se olhou para o Uruguai, Colorado, Washington, para o Alasca, para a Holanda, para Espanha (para os clubes sociais) e o que se destacou foi que há exemplos que funcionam muito mal e outros muito bem. O caso da Holanda é um desastre, a meu ver: eles só regulamentaram a venda nas coffee shops, mantendo ilegal a produção e distribuição. Se olharmos para o Uruguai, onde se regulamentou a produção, distribuição e venda, compreende-se que é possível mitigar riscos para o consumidor e ter uma política ativa de dissuasão. Daí que tenha construído uma solução, que apresento ao congresso do PSD, que olhe para os efeitos judiciais, económicos e na saúde da cannabis, perceber o que está a acontecer e ver se é possível fazer com que as pessoas consumam menos - libertando recursos para apostar mais na educação e campanhas de dissuasão, como para as forças policiais, que se dedicam quase exclusivamente à produção de cannabis, deixando o ecstasy, a cocaína e outras drogas, cujos efeitos nefastos na saúde serão sempre negativas. A proposta pode ser vista como liberal, mas na realidade é altamente conservadora por via da regulamentação, como o preço...
Porque propõe a venda a preço de mercado.
A venda na farmácia só deve ser permitida a quem estiver registado para comprar. O preço no estado do Colorado foi estabelecido de forma a que o imposto igualasse o preço de venda no mercado ilegal. Em Washington consideraram que o imposto devia ser muito mais elevado, porque pensaram que as pessoas estariam dispostas a pagar mais. O que a evidência demonstrou? É que em Washington o mercado ilegal continuou a prosperar, enquanto no Colorado praticamente desapareceu. Mais uma lição aprendida, sendo que não se pode vender abaixo do preço do mercado, para não ser visto como um incentivo ao consumo.
O relatório do SICAD (Serviço de Intervenção em comportamentos aditivos e dependências) apresenta um aumento do uso de cannabis e João Goulão disse que a discussão sobre o uso terapêutico está a prejudicar a prevenção. O que é que tem a responder?
Que, ano após ano, o consumo está a aumentar. E o que é que está a ser vendido nas ruas? Cannabis mais potente, muitas vezes misturada com produtos sintéticos. O que é que demonstrou a evidência científica? Que a venda de cannabis em grandes quantidades, com elevada potência - particularmente abaixo dos 18 anos -, proporciona riscos para surtos psicóticos e esquizofrenia. Se pusermos uma idade mínima, como defendemos, de 21 anos de idade, com concentração baixa de ihc, sem produtos sintéticos, não permitindo a sua venda como produto alimentar ou de qualquer bebida... Mitigando estes riscos, garantimos que os nossos jovens estão mais protegidos, que estamos a acabar com o mercado ilícito (ou a diminuí-lo significativamente) e que estamos a garantir que quem consome está a consumir um produto cujos riscos conseguimos mitigar. Mas é importante dizer-se isto: os riscos para a saúde e para a sociedade são superiores com o tabaco e com o álcool do que com a cannabis neste formato que estamos a defender.
Já conseguiu falar com Rui Rio sobre esta sua proposta, que levará ao congresso do PSD?
Ainda não, espero poder fazê-lo até ao congresso. E espero conseguir convencê-lo a ele e à maioria dos delegados ao congresso, que terão que votar esta proposta.
O congresso devia discutir também a eutanásia?
Creio que sim. É um tema que o PSD terá que discutir, é um tema que nunca terá uma disciplina de voto associada, por estar em causa a vida humana. Mas é um debate que está profundamente inquinado. Ainda recentemente Francisco George, um extraordinário antigo diretor-geral da Saúde, disse algo com que não posso concordar...
Que nos serviços de saúde privados há um excessivo prolongamento artificial da vida.
Mas a verdade é que não há só nos privados, há em todo o lado. O que estamos todos de acordo é que um prolongamento excessivo da vida é inaceitável. O sofrimento desnecessário da pessoa é sempre inaceitável. Não podemos é confundir a distanásia (utilizar terapêuticas para além do que consideramos razoável) com a eutanásia.
É a diferença entre deixar morrer ou matar?
A questão é mesmo essa. Quando falamos sobre estas matérias utilizam-se argumentos extremos, para não discutir a questão de fundo. Eu percebo que estão a defender o que acreditam que é melhor para a humanidade, mas eu discordo profundamente. Houve um artigo de uma revista internacional que concluiu que as razões por que as pessoas pedem a morte num contexto de eutanásia (temos que ter a noção que é dizer que estamos dispostos a que o SNS financie que se mate alguém), é que as pessoas têm receio do futuro, estão desgastadas por uma doença prolongada, estão deprimidas ou sentem-se um peso para as famílias. Então, alguém que é contra a eutanásia quer o quê? Que a pessoa sofra?
Felizmente hoje está mais do que demonstrado que há apoio psicológico, muitas vezes familiar, e medicamentoso para mitigar a dor. O que esses medicamentos podem fazer é um duplo efeito terapêutico: eliminar a dor e acelerar o processo de morte. Esse duplo efeito está aceite na ética médica, até pela Igreja Católica. Mas uma coisa é mitigar todo o sofrimento do doente, outra é nós, enquanto sociedade, dizermos que temos várias opções enquanto médicos e que uma delas é a morte. "Esta é mais rápida e nós pagamos". Creio que estaremos a dizer que estamos a desistir. Não posso aceitar que a sociedade desista das pessoas.
O outro argumento que é usado é que as pessoas são livres, autónomas. Quem é verdadeiramente livre perante um Estado que diz: "Eu desisti de si"? Essa pessoa não é livre. Veja-se o paradoxo: Portugal está no 41º lugar no acesso a cuidados paliativos, que podem mitigar a dor, e seria o 5º país do mundo a aprovar a eutanásia. O que aconteceu em todos os outros é que começou com muito poucos casos aprovados - como na Bélgica e Holanda - e onde hoje já mais de 70% dos casos são aprovados. Na Suíça, com o suicídio assistido, entre o primeiro contacto com a agência e a morte decorrem menos de 24 horas. Caso se abra esta porta, com o envelhecimento populacional, estamos a abrir um caminho em que a sociedade não quer cuidar dos mais vulneráveis.
Esta matéria deve ser sujeita a referendo?
Tenho algum receio que o referendo vá levar a uma bipolarização do debate. Porque já tivemos várias experiências com referendos e todos levaram a que alguém seja a favor ou contra. E o que estou aqui a dizer é que há um reconhecimento de que o sistema, como está hoje, está mal. As pessoas estão a sofrer desnecessariamente. O testamento vital não está a ser devidamente implementado.
As pessoas têm recorrido pouco...
Muito pouco. Não existem cuidados paliativos. Há aqui um conjunto de medidas que têm que ser tomadas que significam que a situação atual não está certa, mas em que a eutanásia não é solução. O referendo pode-nos empurrar para um extremar de posições em que, no final do dia, as pessoas ficarão mal.
Mas já há projetos do BE, do PAN, do PS. Isto divide os dois maiores partidos: PSD e PS terão deputados a favor e contra. Mas nenhum dos partidos tinha este assunto nos programas eleitorais. Até que ponto há uma legitimidade para decidir?
De acordo. A posição séria, em particular do PS, teria sido aguardar no mínimo até 2019 e colocar isto no seu programa eleitoral. Feito desta forma parece-me incorreto. Ainda para mais invocando a dignidade da morte: vivemos numa sociedade em que se fala da dignidade da morte e as pessoas deixaram de falar na dignidade da vida. Temos é que garantir que até ao último suspiro as pessoas terão dignidade na vida. E creio que estamos a inverter toda a discussão, para tomarmos decisões que facilitem a nossa consciência pela ausência do que deveríamos estar a fazer. O SNS está com problemas graves, não está a responder aos problemas das pessoas, dos doentes em particular, e estamos a acelerar o caminho da morte para aliviar o resto. Isso não me parece aceitável. O referendo pode, no limite, dar a legitimidade - mas eu pergunto: vamos perder mais não sei quantos meses numa discussão, sem resolver um conjunto de problemas de base que neste momento estão a permitir que as pessoas estejam a sofrer. É nesse apelo à responsabilidade dos deputados que devemos ter como discussão. Os argumentos que aqui apresentei levantam tantas dúvidas sobre a intenção e efeitos da eutanásia que creio que um deputado responsável só pode votar contra.