06 abr, 2018 - 14:35 • João Carlos Malta
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Em Santa Maria Maior, no centro do centro de Lisboa, os últimos cinco anos trouxeram menos dois mil eleitores. São dados oficiais, não são apenas uma impressão. É verdade que uns poderão ter morrido, outros saído porque quiseram, mas todos estão convencidos de que são o turismo e a pressão do alojamento local que traz a especulação imobiliária, responsável mais vítimas.
A Junta de Freguesia de Santa Maria Maior quis dar ao fenómeno os rostos que o compõem e, na passada quinta-feira, deu-lhes voz. E eles falaram sobre como, de repente, tudo muda. As ideias de “cultura”, de “história”, de “gerações que sempre ali viveram” nada contam quando do outro lado está mais uma oportunidade de negócio.
Hermínio, Maria e Ana são três rostos. Dão-nos três histórias na primeira pessoa.
E se quando a Isa nascer não tiver quarto?
A barriga denuncia o óbvio. Sairá dali vida, em breve. Um momento que Maria Conceição esperava há tanto tempo. Com carinho, foi preparando o quarto para a Isa. Sim, ela já tem nome, antes chegar ao mundo.
Só que, de um momento para o outro, chegou uma carta. Lá está escrito que ela e o marido têm um mês para sair do T0 no Castelo de S. Jorge.
Sem alternativa, porque a que havia, a possibilidade de comprar o prédio por 500 mil euros não é sequer opção. Ela ganha 580 euros como ajudante de cozinha e ele é eletromecânico.
“Estou grávida de oito meses e estava a preparar o apartamento para receber a minha filha. Estava tudo organizado e, agora, comecei a encaixotar para mudar”, diz com uma voz pausada e serena.
O marido disse-lhe para esperar e conversar com o novo senhorio. Fizeram-no. Do outro lado ouviram: “Podem ficar mais 15 dias após o nascimento”. “Isso não adianta”, desabafa.
Aos 40 anos, à espera da primeira filha, Maria revela que tudo isto “está a tirar-me o sono”.
“Tive de desmontar toda a minha vida”, diz a mulher, que chegou há dois anos do Brasil.
O futuro aparece com muitas interrogações - demasiadas - e as alternativas são poucas: “A gente não sabe o que fazer. Já corremos tudo. Não queremos sair do centro histórico.”
Não é capricho, é necessidade. A futura creche da Isa é na Voz do Operário, onde já o pai andou. Maria trabalha ali, a dois passos, no miradouro de Santa Luzia. A vida está toda ali, mas 600 e 900 são números - em euros - que a deixam longe do centro.
E, depois, há os laços. “Os vizinhos ajudam-se uns aos outros, a descer as escadas, tudo. Há uma senhora que tem um cancro e perdeu 80% da capacidade. Somos uns pelos outros”, relata.
Já não é a primeira vez que Maria Conceição e o marido passam por isto. Há pouco mais de um ano, quando viviam em Alfama, tiveram de sair da casa em que estavam. O museu judaico nasceria no prédio em que habitavam.
Um mês para sair de casa foi o que tiveram. Aquilo que parecia ser um drama, foi um achado. Conseguiram esta casa no Castelo e, ainda por cima, mais barata: 350 euros.
Mas o povo diz que a história não se repete duas vezes e Maria está descrente. “A gente diz que resiste, mas até quando? Há uma hora em que nos cansamos e eu estou mesmo cansada. Na rua a gente não fica, mas até que ponto não ficamos? Para onde vamos?”, pergunta.
Quarenta e três anos desaparecem num mês
Ana Luísa nasceu, cresceu, fez-se mulher, casou, teve filhas. Tudo naquele prédio do Castelo, o único a que chamou casa. São 43 anos que se desmultiplicam em memórias. E, a 6 de março deste ano, a História quis por um ponto final naquela história.
A carta do novo senhorio era seca: “Diz onde devo pagar a renda e que não estão interessados em renovar o contrato que começou em 2005 e acaba em junho de 2018 [mudou para a casa ao lado do rés-do-chão em que a mãe vive].”
Alternativas que lhe foram dadas? “Zero”. “Estamos a lutar e a apoiar quem necessita porque também preciso”, revela.
É isso que as pessoas que vivem no Castelo de S. Jorge fazem. Apoiam-se e querem dar a conhecer a sua história, porque, como o presidente da Junta de Santa Maria Maior, Miguel Coelho, disse, "estas pessoas, ao contrário de médicos e enfermeiros, não fazem greve, não param o país”.
Mas o país está a mudar. Lisboa, pelo menos, está. Ana, quando se lhe pergunta o que mudou, responde de um trago. “Tudo”. Depois, especifica: “Olhamos para a frente e não vemos as caras que víamos. Olhamos para o lado e está vazio. A rua não tem vida, a que tem são os estrangeiros”, conta.
Ela sente profunda tristeza porque vê que o lugar que a construiu está a destruir a própria identidade. Mas o que a deixa pior é ver a mais velha de três filhas, de 22 anos, a chorar: “Não quer ficar longe da avó e sente que isso vai acontecer.”
Das pessoas com quem Ana brincou em criança poucas ainda vivem no Castelo. Agora, é ela que entra no filme a que já assistiu muitas vezes, protagonizado por amigos e vizinhos de toda uma vida.
A mudança, aquela que não queria, mas que lhe é imposta esbarra na realidade do dinheiro. Pagava 305 euros, até agora. “Num país em que o ordenado mínimo é de 580 euros, onde temos dinheiro para pagar 600 euros de renda em Lisboa?”, questiona.
A mercearia dos pães quentinhos vai ficar fria e vazia
Hermínio tem 73 anos no corpo, mas uma voz que transmite a força de um rapaz de 30. Ele também o verbaliza: “Sinto-me jovem”. Por isso, está a lutar, há seis anos, para manter de portas abertas a "Mercearia Estrela do Castelo". Trava uma luta burocrática contra o sistema.
A história é intrincada. O prédio onde tem o estabelecimento pertence a um bloco de duas partes, com mais de uma dezena de frações. Tem dois IMI, dois registos prediais, tudo a duplicar. Quis comprar quando, em 2012, foi colocado à venda pela “família Ricciardi”.
O primeiro preço rondava os 500 mil euros. "OK", disse, podia avançar.
Mas o preço aumentou, pouco tempo depois, para mais de 800 mil. Já não tinha músculo financeiro para chegar lá e propôs comprar apenas uma parte do prédio. Começou a disputa judicial, que já foi da primeira instância à Relação. Não chegou ao Constitucional porque Hermónio sente-se cansado.
A juíza decidiu que quem quisesse comprar tinha que adquirir as duas partes do prédio, porque o registo “não está em propriedade horizontal”.
Hermínio não vai morrer de fome, sabe disso. Tem de onde lhe venha o rendimento, mas ele e a mercearia já são uma e a mesma coisa. E, dentro dela, os vizinhos e os clientes passaram a ser “família”.
“Vendo fiado a um conjunto de famílias, que me pagam no fim do mês. Como vão fazer agora?”, pergunta.
Aquela mercearia é um espaço raro nas redondezas. Hermínio explica: “Tenho pão quente três vezes ao dia e tenho pessoas que ficam aqui uma hora à espera para levar uma carcaça quentinha. Não há mais nenhum sítio aqui em que o possam fazer."
Mas, apesar da emoção, a razão está a tirar-lhe as forças para a luta: “O dinheiro já não me chega. Já tenho de levantar dinheiro da minha reforma e da minha mulher para suportar as despesas que estamos a ter."
“Estou condenado a meia dúzia de meses”, remata.