20 jul, 2018 - 10:47
As construções junto à Ponte da Arrábida, Monumento Nacional desde 2013, numa escarpa que não recebeu o estatuto de Zona de Proteção Especial, têm gerado atritos entre vozes políticas e resistências sólidas por parte de especialistas, que questionam a licitude do processo.
São precisos milhares de anos para que a deposição e erosão de rochas que ladeiam o rio Douro esculpam uma escarpa com a envergadura da que se pode encontrar a jusante da Ponte da Arrábida, projetada por Edgar Cardoso, entre o Porto e Gaia. A escarapa não é Monumento Nacional, ao contrário da ponte, reconhecida com esse estatuto em 2013, mas, para o geógrafo Álvaro Domingues, “é uma abertura sobre o rio em que a forma como, depois, se lança para o mar, cria a ideia do infinito”.
O investigador recusa, apesar disso, que proteger a arquitetura natural da estrutura geológica seja do domínio do romance e da poesia. "Não é preciso ter uma sensibilidade muito apurada para perceber que a Ponte da Arrábida é excecional como obra de engenharia, mas é também excecional o lugar onde ela está. É como se fosse um arco, uma aliança que fecha no último lugar em que o rio Douro tem escarpas", explica o professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, à Renascença.
No lugar onde muitos alegam que deveria ser Zona Especial de Proteção, firmada em Diário da República, as obras já avançaram para construir edifícios para habitação, depois de o pedido de licenciamento de julho de 2017 ter obtido parecer positivo em novembro desse ano. Questionada várias vezes sobre o processo, a Câmara do Porto remeteu para uma reunião da autarquia, em Fevereiro, na qual admitiu que a edificação decorria numa zona de “protecção de recursos naturais” devido a direitos “adquiridos desde 2000”.
O recorte das margens do rio já é uma pedra no sapato para vereadores da Câmara, arquitetos e engenheiros há mais de 10 anos. "Nós começamos a ouvir falar disto, na praça pública, desde 2001. Já lá vão 17 anos, com sucessivas discussões. Também houve polémica do outro lado da ponte, em Vila Nova de Gaia, por causa da construção do Yeatman e daquela Disneyland do vinho que ali estão a construir", aventa Álvaro Domingues, para quem o Porto é, hoje, um (jogo do) monopólio.
"Cada rua, cada edifício, cada terreno tem um valor potencial, que, há cinco ou seis anos, era muito baixo. O que mais se dizia do Porto antigo era que estava uma ruína, que estava abandonado, havia imensos letreiros a dizer "Vende-se" e ninguém comprava. A diferença entre o valor real nessa altura e o potencial de valorização é imenso. De repente, parece que há uma ideia inesgotável de valorização e o Porto transformou-se numa espécie de porquinho mealheiro para quem tem muito dinheiro.”
Os argumentos da Oposição
Semelhante é a opinião do vereador Álvaro Almeida, que acredita que a Câmara está a tomar uma má decisão política ao escusar-se a interferir. "Há, claramente, um problema de termos um presidente da Câmara que é promotor imobiliário. Nunca sabemos quando a decisão é do interesse da cidade ou em função dos interesses do promotor imobiliário. Esse conflito de interesses sempre existiu", analisa Álvaro Almeida, em declarações à Renascença.
O vereador do PSD aponta três falhas ao processo que legitimou o avanço das obras. A existência de “uma carta de ocupação de solos no Plano Diretor Municipal (PDM), que prevê que aquela seja uma zona verde” foi, segundo Álvaro Almeida, desrespeitada.
Os “direitos adquiridos” a que a Câmara faz referência “poderiam ser negociados, com contrapartidas, para que não haja construção em locais que vão desfigurar a cidade de forma irreversível e negativa”, conforme explica o vereador.
Por último, Álvaro Almeida lamenta que não tenha sido criado o estatuto de Zona Especial de Proteção, que potencialmente protegeria aquele geomonumento. "Há aqui um processo administrativo relativo à proteção da Ponte da Arrábida que está muito mal esclarecido. Porque é que não foi feita a zona de proteção? Em todo o processo, a Câmara tinha o poder de evitar o problema. Não o quis fazer", conclui.
A vereadora do CDU, Ilda Figueiredo, também questiona a atuação da Câmara Municipal do Porto e a titularidade dos terrenos, que foram cedidos ao Estado e ao Município. Foi entregue, a 9 de julho, um requerimento à Câmara do Porto, documento a que a Renascença teve acesso.
"A CDU e o PCP, quer na Assembleia da República, quer na Câmara Municipal, apresentaram requerimentos em relação ao problema dos terrenos junto à Ponte da Arrábida. Da parte do Governo, tivemos resposta, dizendo que, no Porto, as expropriações foram realizadas com o apoio da Câmara Municipal nos termos legais”, adianta a vereadora da CDU, à Renascença.
Para Ilda Figueiredo, as construções junto à Ponte da Arrábida são um erro político: "Está incorreto todo este processo e por isso é que estamos a tentar clarificá-lo. É preciso clarificar o processo para saber se é, ou não, legal tudo isto.”
Quanto ao apuramento de responsabilidades, Ilda Figueiredo não tem dúvidas. "Que há responsáveis, há, porque a Zona Especial de Proteção não foi publicada. Que há responsáveis, porque nunca quiseram saber deste património, haverá. Que a Direção Regional de Cultura do Norte teve culpa, teve", aponta a vereadora.
A Renascença contactou a autarquia, que mantém a posição de que o projeto decorre com base em direitos “adquiridos desde 2000” e que um alargamento de uma zona proteção a um monumento só pode ser feita pela Direção Geral do Património Cultural. Também contactados pela Renascença, Manuel Pizarro, do PS, e a Direção Regional de Cultura do Norte escusaram-se a prestar esclarecimentos.
Os dois edifícios que a mão humana vai fazer erguer a menos de 200 metros da Ponte da Arrábida já estão a ser construídos.