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Multiculturalidade. Escuta, a rádio que ligou o Intendente a todo o Mundo

26 jul, 2018 - 19:01 • João Carlos Malta

Durante três semanas, uma rádio comunitária feita de estudantes e mediadores culturais levou aos cinco continentes, a mais de 100 países, o que cabe dentro de um trecho de 2,5 quilómetros entre o Martim Moniz e a Praça do Chile, em Lisboa. Histórias de pessoas com história.

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Inês tem o microfone na mão e os auscultadores nos ouvidos. Ali, no estúdio de gravação improvisado com duas cadeiras, está rodeada de quatro ou cinco crianças, todas com menos de dez anos, excitadas que riem e correm sem parar. A jovem estudante de jornalismo queria que os meninos − de uma das comunidades que habitam no Intendente ­− dissessem palavras nas línguas que conhecem. Não sabemos qual foi o resultado final, mas a cena acabou com fotos, muitas fotos de uma das mães das crianças. O momento ficou marcado, gravado.

Criar um registo áudio das comunidades do eixo entre o Martim Moniz e a Praça do Chile foi mesmo o principal objetivo da Rádio Escuta, que durante três semanas de julho, quatro vezes por semana, esteve online. Com cinco estudantes, cinco mediadores culturais, e mais seis pessoas a coordenar toda a parte editorial e técnica, a rádio foi ouvida em mais de 100 países por todo o mundo. O resultado deste projeto ainda pode ser ouvido em www.escuta.pt.

Registar foi importante, mas ajudar e ser útil foi ainda mais fundamental para uma rádio que se afirmou como comunitária. O jornalista e professor universitário Ricardo J. Rodrigues, que comandou a parte editorial da rádio, recorda um dos momentos de afirmação do projeto.

A notícia de que o centro de saúde do Martim Moniz faz atendimentos ao domicilio e leva um tradutor de bengali, não deixou ninguém indiferente. A partir daí, aquela comunidade não parou de contatar a rádio para saber mais.

“Estamos a dar informações nas línguas deles e é a primeira vez que estão a ouvir isto”, sintetiza Ricardo. A rádio foi composta por programação musical e informação falada em sete línguas. Uma babel construída com bengali, nepalês, mandarim, urdu, hindi, português e o inglês.

“A utilidade é o maior ‘feedback’ que temos recebido. Não só estamos a fazer os retratos do que se passa no bairro, como os nossos noticiários em sete línguas diferentes têm informações muito práticas que criam o empoderamento desta população”, acrescenta o jornalista.

Take1 do Escuta

A mentora do projeto foi Marta Silva, que está há sete anos a trabalhar no terreno com as populações daquela zona de Lisboa, através do gabinete camarário de apoio a bairros prioritários, e explica que este é o primeiro ato do projeto “Escuta”.

Este ano ganhou forma de rádio, mas já promete que o conceito terá nos próximos anos mais dois formatos ainda por desenhar, mas que deverão primeiro seguir pela palavra e fotografia e depois pela imagem em movimento.

A rádio foi a forma de, em primeiro lugar, chegar àquelas comunidades, porque “quando se chega a um país diferente é a oralidade e não a escrita que primeiro aprendemos”.

Marta revela que para pôr este projeto de pé foram fundamentais os cinco mediadores culturais. Há subtilezas que só um “insider” consegue descodificar. “Há questões que só falando com pessoas chave da comunidade é que se percebe o porquê de uma mensagem não estar a chegar. Em algumas culturas não podes falar com uma mulher e noutras já podes”, refere.

A importância dos mediadores

A estudante de jornalismo do primeiro ano da Universidade Lusófona, Inês Ribeiro, de 19 anos, confessa que uma das maiores dificuldades de fazer ali jornalismo é “chegar às pessoas”. “Há umas comunidades mais complicadas do que outras, nomeadamente a chinesa”, explica, ao mesmo tempo que valoriza a “grande ajuda dos mediadores, que nos põem em contato com as pessoas”.

Francisco, de 21 anos, é colega de curso de Inês, e durante estas três semanas foi o editor dos noticiários radiofónicos da Escuta. Ele que até há um mês nunca tinha ido ao Intendente, agora já diz que lá terá de voltar com frequência para rever as pessoas que conheceu e os locais em que esteve.

Também reitera que “todas as comunidades têm costumes diferentes”, com a do Bangladesh, por exemplo, com quem é muito fácil comunicar “porque falam inglês e português”.

O jovem relata que ao início as pessoas eram mais reticentes a falar, mas que, depois de “ouvirem as pessoas aqui no bairro”, passaram a ter interesse. “Começaram a chegar ao pé de nós e desbloquear mais a relação”, explica.

Ricardo J. Rodrigues não vê, apesar de tudo, grandes diferenças em fazer jornalismo no Intendente ou noutro lado qualquer. “Jornalismo é jornalismo, contar histórias é contar histórias, curiosidade e rigor são os dois princípios básicos”, define.

O maior desafio, segundo o docente da Lusófona, foi perceber o que é que aquelas comunidades precisavam. “É-lhes útil ou não é?”, era a pergunta que os jovens jornalistas levavam para cada decisão editorial.

Terreno virgem

Neste projeto aconteceram muitas primeiras vezes, a de alunos que nunca tinham feito rádio, ou a dos mediadores que nunca tinham participado num projeto destes.

Ricardo afirma que foi um “belo desafio”, porque “quase ninguém tinha feito rádio e de repente já toda a gente está a querer ir para o estúdio, os mediadores culturais entram e temos conversas trilingues: um bocadinho em português, um bocadinho em inglês, depois vem o Mandipp e diz qualquer coisa em hindi”.

“Toda a gente está muito entusiasmada porque o impacto é muito direto. A rádio tem esta vantagem e esta magia”, sublinha.

Da música, aos documentários falados da antropóloga Hélène Veiga Gomes, às short-stories dos estudantes, a Rádio Escuta teve o ritmo da diversidade do bairro. E teve emoção, muita emoção.

“Contamos a história de um cidadão do Bangladesh que tem saudades da mulher e todos os dias lhe liga para lhe cantar a música da vida deles”, conta Ricardo.

Inês também se emocionou. “Houve histórias que me tocaram mais do que outras, uma delas foi a de uma senhora que estava a desenhar na rua, que fazia parte de uma associação. Foi pintora e depois, de uma forma muito fria, disse que viveu cinco anos na rua e que era o desenho que a fazia matar saudades e dar-lhe vontade de viver”, recordou.

Francisco diz que esta experiência lhe mostrou que “este tipo de rádios faz muita falta para dar voz a quem não a tem”.

Um local em mudanças, mas para onde?

O momento que o Intendente está a passar também não deixa ninguém indiferente. Depois de ser um local maldito em Lisboa, em que a degradação, a prostituição e a toxicodependência eram a imagem de marca, passou a ser um local da moda, em que muitos vão para se divertir à noite. Agora a pressão imobiliária cria novos desafios e novas mudanças.

Inês relata que o edifício em que funciona a redação da Rádio Escuta “já foi comprado e vão ser apartamentos de luxo”.

“É pena porque as comunidades que cá moram vão deixar de se sentir em casa, porque muitas das pessoas que eu entrevistava me diziam: ‘vou ao Martim Moniz porque lá jogam criquete e eu já não jogo há anos como jogava no Bangladesh’. Têm as lojas com os alimentos que eles comem, as roupas que eles usam, e acabar com isso é triste. As pessoas vêm para aqui para viver em comunidade e nos subúrbios não vão ter isso”, conclui a jovem.

Marta, que além de trabalhar com as populações locais também vive ali há muito tempo, afirma que o que mais se nota agora é “a incapacidade de resistência”.

“Nos últimos dois anos, o interesse imobiliário e económico provocou um desequilíbrio muito grande entre a lógica comercial e a lógica social. Todos os dias há pessoas a serem desalojadas”, relembra.

Ricardo concorda e garante que há “sinais claros de gentrificação e as pessoas estão a ser mandadas para fora”.

Permanente ou efémera?

Por isso, garante, é cada vez mais importante que haja meios que deem voz às populações como a Rádio Escuta. “Estamos a fazer o registo histórico de um tempo muito especifico, mas também muito bonito”, disse.

“Percebemos que é uma necessidade e todos temos o sonho de que a Rádio Escuta continue e tenha uma voz. Foi um projeto a três semanas de uma rádio efémera e comunitária, gostaríamos de a tornar permanente e definitiva”, explica.

Na mente de todos os que participaram no projeto está a vontade de que ele continue. Marta Silva diz que não é impossível que a estrutura seja permanente, mas é difícil.

“Nós gostamos muito de lutas e de desafios e também já estivemos a refletir. Isto poderá seguir um caminho permanente, mas pode continuar também num formato pop-up”, remata.

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