10 dez, 2018 - 07:01 • Dina Soares
Paulo Saragoça da Matta é o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
No dia em que se celebram os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o advogado português deixa transparecer o seu pessimismo relativamente aos retrocessos no respeito por direitos que já pareciam adquiridos.
À Renascença, Saragoça da Matta diz que o respeito pelos direitos humanos é como as eras glaciais: vai e vem. E teme que, neste momento, estejamos a entrar de novo na idade do gelo. Reconhece ainda que, no que toca à justiça portuguesa, há muitas vezes uma grande distância entre uma lei correta e uma prática nem sempre isenta de erros.
No ano passado, 197 portugueses apresentaram queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) contra a justiça portuguesa e 10 ganharam os processos. Não serão casos a mais para um Estado de Direito democrático?
São muitas queixas, principalmente para um Estado tão pequeno. Para mim, a justificação reside no facto de a justiça ser daquelas áreas em que os direitos humanos são menos compreendidos e aplicados na decisão concreta dos casos – muitas vezes não por responsabilidade de quem aplica justiça, mas pelo próprio modo como está estruturado o mecanismo judiciário português.
A morosidade é a principal causa dessas queixas?
O atraso na justiça é realmente o grande problema da justiça portuguesa em termos visíveis, mas não é o único problema. Eu diria que a falta de qualidade intrínseca jurídica de algumas decisões judiciais, mesmo que sejam poucas, dão uma imagem negativa que em nada contribui para a confiança dos cidadãos na própria justiça.
Preocupa-me mais outro tipo de problemas que a justiça tem, que afetam fundamentalmente os direitos humanos e que não são de morosidade. Mas esses são quase insindicáveis e muito raramente os tribunais internacionais, neste caso o TEDH, tem a possibilidade e a vontade de conhecer. Porque o Tribunal Europeu tenta não ter ingerências diretas em questões de substância a menos que a questão seja mesmo clamorosa.
Quer dar algum exemplo desses problemas?
Preocupa-me muito que, estando o sistema processual penal português estruturado de uma maneira em que, aparentemente, todos os direitos estão garantidos, quando uma questão concreta dessa matéria chega ao Tribunal Europeu este diga que a lei está perfeitamente equilibrada e que os direitos das partes estão assegurados quando, na prática, nós sabemos que não é assim.
Um exemplo concreto é a obrigatoriedade de todas as escutas telefónicas serem vistas por um magistrado para ser feita uma seleção entre o que é e o que não é relevante. Como é que é possível que escutas telefónicas que não relevam de todo, acabem por ficar no processo até ao fim, até ao julgamento?
Há também várias queixas relativas às questões de género. A justiça portuguesa ainda tem critérios diferentes consoante o género?
Basta consultar os arquivos dos tribunais de família e menores, para ver que o género feminino é muitíssimo protegido na jurisdição de família em detrimento de uma suposta igualdade afirmada na Constituição.
Se bem me recordo, a própria presidente da Associação das Mulheres Juristas deu uma entrevista em que ainda mantém a posição de que as crianças estão bem é com a mãe, dando a ideia de que os pais são incapazes, violentos ou desinteressados. Ora, não podemos afirmar o princípio da igualdade, mas depois defender que os homens não podem cuidar dos filhos ou que as mulheres são "fáceis" e por isso os homens abusam delas. Não podemos ter dois pesos e duas medidas. Há muitas decisões e comentários infelizes relativamente ao género feminino, mas diria que há muita descriminação relativamente aos homens porque menosprezam o seu papel num outro campo.
E em matéria de violência doméstica?
Por regra, o agressor é masculino, mas sabemos que também há situações de agressão no feminino, e aí entram as cifras negras já que é muito mais difícil a um homem apresentar queixa por violência doméstica enquanto vítima.
Enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, com que problemas é mais confrontado?
Uma parte muito significativa vem das prisões, que é uma área da sociedade pela qual muito poucos portugueses se preocupam e as condições prisionais deixam muito a desejar. A Comissão não tem uma competência de atuação direta nessas matérias, mas reencaminha os casos para as entidades oficiais, pedimos explicações e alertamos para que a situação é violadora dos direitos do homem.
Também recebemos protestos de pessoas individuais a queixarem-se do funcionamento da justiça e até do comportamento dos próprios advogados, [queixas que] remetemos para as instituições oficiais, neste caso a Ordem dos Advogados.
E também existem pessoas que se queixam de situações que, por terem levado 10, 15 ou 20 anos a resolver, as deixaram na miséria. Em regra, o que tentamos fazer é encaminhar as pessoas para quem as possa ajudar, mas eu diria que os direitos económicos, sociais e culturais talvez sejam o capítulo em que Portugal mais precisa de amadurecer.
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem acrescentou os direitos sociais e as questões da natureza e do ambiente à sua designação. A Declaração Universal dos Direitos do Homem não fala diretamente da proteção do ambiente, que hoje é um problema fundamental de direitos humanos. Acha que esse aspeto devia ser acrescentado?
Não precisamos de alterar os textos internacionais. Os textos internacionais, e depois alguns mais sectoriais, chamam muito a atenção do direito romano como sendo fundamental para o desenvolvimento integrado da personalidade do ser humano. Ora, este direito não pode ser o livremente exercido se não houver condições à volta que permitam.
O ser humano precisa de um ambiente saudável. É uma das condições para poder exercer os seus direitos. Não é necessário alargar a previsão dos textos porque decorre da sua própria essência.
Os direitos humanos têm um caráter expansivo. Começaram por ser uma luta contra o poder para se poder votar, intervir na vida política, ser eleito, não ser preso sem culpa formada, não poder ser despojado de todos os bens de uma só vez por sanção administrativa ou mesmo judicial. Chegámos depois a uma fase muito maior de desenvolvimento, em que reconhecemos o direito à habitação, ao trabalho, à educação, os direitos das crianças. Decorre da lógica do sistema que haja também este direito ao ambiente.
A Europa tem exercido o papel de farol dos direitos humanos e, no entanto, na União Europeia, temos assistido a retrocessos importantes em países como a Hungria, a Polónia ou a Itália, perante um olhar muito complacente dos outros Estados-membros. Estaremos numa fase de retrocesso ou esta visão é muito pessimista?
Pessoalmente, estou muito pessimista. Os direitos humanos são uma conquista diária, não são um presente, um luxo. São a condição básica do nosso desenvolvimento enquanto seres humanos.
Falou da Hungria e da Polónia, eu acrescentaria outros países com um comportamento um pouco mais musculado, como a Áustria. É muito complicado vermos isto acontecer, vermos Estados tão importantes como os EUA a abandonarem organizações internacionais. Não basta a dificuldade de garantir, dia a dia, o respeito pelos direitos humanos. Ainda vemos tomadas de posição oficiais, estatais, a dizer que não, isso não interessa, a virarem-se para outros temas. É altamente preocupante.
As eras glaciais vêm e vão. Temo que estejamos a viver um momento em que as pessoas se esqueceram, até devido aos medos que lhes são incutidos por força de comportamentos estranhos, como por exemplo o terrorismo, e que as levam a preferir perder parte da sua liberdade em benefício de uma suposta segurança.
Quando isto é feito, estruturalmente, por um Estado, o inimigo deixa de ser o criminoso, o terrorista, e passa a ser apenas o outro, o que é diferente. Isso deixa-me extremamente pessimista.
Temo que, em alguns desses países, só quando a situação se tornar tão dramática como já foi é que as pessoas se lembrem que algo de muito mau aconteceu. Algo de mal aconteceu uma vez e está a acontecer segunda vez.
De que forma Portugal será influenciado por esse ambiente?
Penso que Portugal não vai alinhar em movimentos reducionistas dos direitos humanos, mas o ambiente sociológico e jurídico europeu pode começar a ser afetado por estes pequenos focos anti-direitos humanos. Se isso começar, necessariamente vai influenciar países mais próximos de nós e, de uma maneira ou de outra, vai influenciar pensadores portugueses.
Portugal deve manter-se unido na defesa dos direitos humanos, principalmente em momentos em que essa ameaça se começa a ver mesmo nos bastiões mais tradicionais da cultura, da matriz jurídica europeia. A matriz jurídica europeia é a da tutela dos direitos humanos. Se dentro desta matriz houver um ou dois países que vacilam, todo o equilíbrio pode ser alterado.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é diariamente invocada, mas não é um documento vinculativo. Diria que ainda hoje, 70 anos depois da sua aprovação, continua a ser uma utopia?
Não, não acho que seja uma utopia. Acho que, não sendo juridicamente vinculativo, é moralmente vinculativo. Toda a humanidade honesta e proba se sente vinculada àquele documento.
Além disso, há documentos de proteção universal e setorial na Europa, que esses sim são vinculativos.
Aquele documento tem o valor de uma carta histórica que representa bem as intenções retas de quem o escreveu. É muito vago, é genérico, há muita coisa que não está lá, mas que depois está nos textos que dali nasceram.
Eu diria que foi uma semente não jurídica que produziu muitas árvores jurídicas. Basta olhar para a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que instituiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. O Estatuto de Roma também a nível de proteção europeia, e o Conselho da Europa, que instituiu o Tribunal Penal Internacional. Ou seja, todos estes outros documentos que andam aqui à volta são juridicamente vinculativos e esses documentos não são alheios ao pensamento, à estrutura, à filosofia que está por trás da Declaração Universal.
Diria que a Declaração Universal tem uma juridicidade indireta. Não é juridicamente vinculativa, mas o que dali nasceu é juridicamente vinculativo e por isso está indiretamente protegida.