22 jan, 2019 - 23:44 • Eunice Lourenço
“A morte é um dia que vale a pena viver” - a frase é uma provocação que dá titulo ao livro de Ana Claudia Quintana Arantes, uma médica brasileira especialista em cuidados paliativos.
Em entrevista à Renascença, Ana Claudia Arantes explica como os próprios médicos não estão preparados para lidar com a morte, conta se há diferenças na morte entre ricos e pobres e defende atenção e formação para os cuidadores informais.
Comecemos pelo título: “A morte é um dia que vale a pena viver”. O que quer dizer com o título do seu livro?
O título tem sido avaliado como algo bastante provocador, mas a ideia não era essa. Fiz questão de ter a palavra ‘morte’ no título porque as pessoas têm muita dificuldade em falar sobre esse assunto. Digo que o título do livro serve como triagem: quem não é capaz de viver uma vida com sentido, com plenitude, não é capaz de falar sobre a morte e, então, nem sequer vai abrir o livro.
Porque é que se fala tão pouco sobre a morte?
Existe uma fantasia muito clara no nosso mundo ocidental: falar sobre a morte é algo que pode dar azar. "Vira essa boca para lá" "vamos mudar de assunto" ou "Não precisamos de falar sobre isso". Algumas pessoas até me repreendem e perguntam: "Ana Claudia, porque fala sobre isso? É uma pessoa tão alegre, que promove a felicidade...." Eu respondo que, se não falarmos sobre a morte, dificilmente encontramos alegria nos nossos dias, porque há sempre alguma coisa difícil para ser vivida. Você torce para acabar o dia, você torce para chegar o fim-de-semana, espera pelas suas férias, muita gente espera a reforma ...
São, no fundo, vidas adiadas?
Exatamente. Há uma vida adiada, mas não há um prazo para adiar, porque o tempo que adiou não vai voltar. Eu brinco e digo que falo sobre morte há 25 anos e ainda não morri. Não deu azar (risos).
A Ana Claudia é médica e pelo que se lê no seu livro acha que os médicos estão pouco preparados para lidar com a morte, são educados sobretudo para a cura e a morte é um falhanço. É assim?
Sim. Somos ensinados a procurar a cura a qualquer preço, mesmo que isso sacrifique a qualidade de vida dos pacientes e - caso a doença não tenha cura ou não exista nada que a medicina possa fazer para, pelo menos, controlar a doença - , a nossa perceção de fracasso é muito, muito intensa, é muito dorida. Então, vejo nos cuidados paliativos a única oportunidade de o médico nunca mais fracassar na vida porque, na minha opinião e na opinião de muitas pessoas, fracassar é abandonar o paciente porque a doença dele não tem cura. O fracasso é não saber o que fazer e há muito para ser feito quando as pessoas estão numa fase tão delicada da vida delas como esta.
Fala no conceito de morte natural. Que conceito é esse?
A morte natural é aquela que acontece sem ser apressada, nem adiada. É a morte que acontece no dia certo, no dia em que a doença correu o seu curso natural e leva essa pessoa à morte. A pessoa não é levada a prolongar o seu sofrimento. É uma verdadeira tortura as pessoas ficarem em terapia intensiva com os órgãos a serem substituídos por máquinas, mas sem a mais pequena oportunidade de regeneração. Ou, então, apressar a morte porque a doença não tem cura e, então, é como se a vida não tivesse cura. A vida não tem cura porque a vida não é uma doença, a vida é a vida.
E o que pensa sobre a eutanásia, que é esse apressar da morte?
Não condeno quem faça, não condeno quem a peça, mas não faço, nem pedi. Espero não pensar sobre essa possibilidade de pedir porque acredito que, aliviando o sofrimento das pessoas, elas querem viver. Todos os pacientes que me pediram eutanásia, pude oferecer-lhes a oportunidade do alivio do sofrimento que eles viviam, e todos eles mudaram de ideias porque, quando o paciente não tem dor, não está abandonado, o paciente sente-se digno porque a vida merece ser cuidada e quer aproveitar mais um pouquinho do tempo aqui.
Tivemos recentemente em Portugal o debate à volta da legalização da eutanásia e voltaremos a ter, certamente, depois das eleições. É uma discussão que também esteja a ser feita no Brasil?
No Brasil, ainda não temos nem condições para discutir a morte natural num nível de maior maturidade, tanto da sociedade em geral como da sociedade médica. Não existe maturidade para se conversar sobre a dignidade da vida bem vida pelas condições que a medicina oferece. Penso que precisamos de ter muita conversa sobre a morte natural antes de abrir espaço para a eutanásia
Pelo que conta no seu livro, já trabalhou - simplificando - em hospitais para ricos e para pobres. Há diferença na morte?
Não há diferença na morte. Eu costumo dizer que muda o figurino, muda a forma de se vestir ou de falar. Tive oportunidade de trabalhar num hospital público onde os quartos eram duplos e eu dizia que ali não havia o nome chique, o nome elaborado da solidão, que é ‘privacidade’. As pessoas partilhavam esse tempo de uma forma muito mais amorosa e presente do que nos recursos privados onde tem de esconder a morte, esconder seu sofrimento porque tem de ficar bem, parecer bem ... Mas, diante da morte, não há nenhum tipo d valor financeiro ou material que permita abrir mão da tristeza da perda de uma pessoa que você ama. Pode ter todo o dinheiro do mundo, mas não vai conseguir comprar essa paz, não vai poder comprar a presença que se vai tornar ausente. E as pessoas que não têm recursos financeiros têm muitas vezes muito apoio da sua própria rede, da rede da comunidade. Muitas vezes a classe média não consegue compartilhar espaços como as pessoas mais simples.
No seu livro, estabelece uma diferença entre empatia e compaixão. Qual é a diferença?
A empatia é compartilhar do mesmo sentimento do outro com base na experiencia da doença que o outro está a viver. Então, você coloca-se no lugar do outro e o grande risco da empatia é colocar-se no lugar de uma pessoa e privá-la do protagonismo da vida dela. Quando você se coloca no meu lugar, você começa a tomar decisões por mim como se fosse eu, mas não é. Toma decisões com base na sua perceção e não na minha e a vida é minha, não é sua. Na empatia, corre o risco de se sentir muito triste, muito mal com o sofrimento que o outro está experimentando. Quando falamos de compaixão, estamos a falar do respeito pelo sofrimento do outro e com o compromisso responsável, presente, de fazer alguma cosia que possa ajudá-lo a passar por esse processo. A empatia imobiliza, enclausura num sentimento de impotência, de angustia, coisa que a compaixão te liberta porque tem de respeitar o sentimento de tristeza, de imobilidade que o outro está a viver e vai olhar para tudo o que tem e sabe e oferece para ajudar a passar por isso. Não passa por isso pelo outro, mas passa com ele.
Dedicou um capítulo do livro à dimensão espiritual do sofrimento. Da sua experiencia, ter fé – qualquer fé – ajuda a viver todo este processo do sofrimento e da morte?
No mundo ocidental temos uma visão muito pequena do que é a fé. A fé muitas vezes é limitada a um espaço de barganha, de troca com um Deus que acreditamos que nos vai salvar e tentamos convencê-lo que a nossa ideia é melhor do que a dele. Na verdade, a perspetiva de fé é a perspetiva da entrega: se é esse o meu caminho eu não vou dececionar meu Deus, vou cumprir a minha jornada com a certeza de que ele me vai oferecer tudo para que eu a cumpra. Independentemente da religião que as pessoas possam escolher como caminho espiritual, se esse caminho for trilhado com base na verdade e no amor, você vai ter um grande alívio, um grande apoio para passar pelo processo da doença. Mas se escolher um caminho de privilégios, de poder, de vantagens, de culpa é um caminho de sofrimento, não é de libertação.
Nesse mesmo capítulo diz que a morte é sempre um ato sagrado. Mas, por outro lado, escreve que os profissionais de saúde devem ter a atitude do 'ateu essencial'. O que é que quer dizer com isso?
O 'ateu essencial' é aquele que não tem nenhuma relação com Deus, é diferente do ateu convertido, que um dia acreditou e, como Deus não se portou como ele queria, ele brigou com Deus e disse ‘você já não existe’. O ateu essencial é aquele que não acredita, recebe a vida e vive, não fica à espera de beneficias futuros depois da morte, não acredita que esteja aqui a pagar alguma coisa, é um ser livre. A brincar, digo que o ateu essencial é o filho preferido de Deus porque ele não dá trabalho, não fica a discutir ou a pedir, não fica a negociar, não quer ser melhor do que os seus irmãos. Falo da perspetiva do ateu essencial porque, geralmente, tem um grande respeito pela fé, pela religião de todas as pessoas e isso deveria ser parte do currículo emocional e humanitário de cada profissional de saúde. Não é porque você não tem a mesma religião que eu que o meu trabalho se vai condicionar à sua perspetiva de que eu estou certa e você errada. Isso contamina o processo do cuidado. Pode ser um caminho facilitador quando temos a mesma religião, mas pode ser um caminho muito difícil quando a religião do profissional de saúde é diferente da religião do paciente.
Outra discussão que temos tido cá em Portugal e que tem um processo legislativo em curso é sobre o estatuto do cuidador informal. Qual é a sua experiência com os cuidadores informais?
No Brasil, vivemos um processo de envelhecimento da população extramente acelerado para o qual ninguém está preparado, nem quem está a envelhecer, nem está a tomar conta de quem está a envelhecer. A presença do cuidador informal é muito frequente, tem os familiares que vão cuidar do paciente, tem muitas vezes alguém que trabalha na casa, para as limpezas, mas acaba por se tornar parte do processo do cuidado físico, da alimentação daquele paciente. O grande engano que temos é pensar que esses cuidadores informais não precisam de cuidados, não precisam ser orientados. A quantidade de pessoas que não aguenta esse trabalho é muito grande. Quando o cuidador informal é parte da família essa atenção tem de ser ainda maior porque é alguém que está a deixar de trabalhar para cuidar desse familiar e essa pessoa deixa de se cuidar, deixa de ter uma vida social, profissional para poder cuidar do familiar. E, quando esse familiar tem uma doença grave em progressão, a perceção de fracasso é ainda maior porque, quando se cuida de uma criança ela cresce e vai para a escola, realiza-se, dá muito trabalho físico e emocional, mas há ali um futuro.... quando está a cuidar do seu pai ou da sua mãe que teve um acidente vascular-cerebral, que teve um enfarte ou tem uma demência ou um cancro, só piora e aí o cuidador ainda tem de enfrentar o seu próprio luto, o luto antecipatório, o período que antecede a morte. Os cuidadores informais precisam de muitos cuidados, de muita atenção e de muita formação.
No momento político atual do Brasil e sendo médica quais são as suas maiores preocupações e os seus maiores receios?
O pais vive um momento muito delicado em que a expressão de intolerância, a expressão de preconceitos, a expressão de falsos caminhos de soluções se colocaram de uma forma mais forte. O meu trabalho como médica, no dia-a-dia dos cuidados paliativos, vai continuar porque as pessoas - vai governo, vem governo - , continuam a ficar doentes e a morrer e elas precisam desses cuidados. A morte não depende do governo, talvez o número de mortes sim, porque as pessoas acabar vivendo dificuldades muito grandes nestas crises, mas penso que o trabalho de cada um no Brasil agora é um trabalho que tem de ter como foco a sua rede de contatos mais pessoal para que isso possa ser fundamentado em amor, em respeito, em paciência. Só vamos mudar o grande, se respeitamos o espaço menor do nosso dia-a-dia. Não vejo outro caminho que não seja esse, até como caminho de sobrevivência.